Imagine essa situação:

[Uma pessoa ao sair de sua casa em direção ao trabalho se depara com a porta da casa vizinha aberta, nela, uma senhora muito idosa faz a faxina, imediatamente a pessoa pode supor que aquela é a nova empregada de seus vizinhos (dois estudantes universitários que dividem o apartamento), uma senhora que provavelmente mora muito longe e se sustenta com dificuldade em um trabalho árduo e que não deve gostar. No trajeto para o seu trabalho o semáforo se ilumina em vermelho e ao parar o carro a pessoa é abordada por um senhor com o rosto surrado, quase que instantaneamente há a aplicação de rótulos verbais e o senhor é identificado como um mendigo, pedinte, esfomeado e, consequentemente, se imagina a vida terrível que ele vive, mas também que é preciso tomar cuidado com o que ele pode fazer naquela situação. Fecha-se a janela do carro. Depois de dirigir por algum tempo, sempre tomando cuidado com o trânsito, lotado de motoristas provavelmente egoístas, mal educados, irritadiços e dissonantes, a pessoa chega ao seu trabalho e encontra uma vaga no estacionamento, quando está prestes a entrar com o seu carro na vaga ouve um grito de alerta e prontamente pisa no freio, e vê pelo retrovisor um rapaz sinalizando que este estaria estacionando errado, o rapaz está vestido de azul, vermelho e branco. O motorista agora sabe se tratar provavelmente de um flanelinha que provavelmente em pouco tempo o pediria certa quantia de dinheiro para olhar o seu carro e que, caso não fosse atendido, poderia danificá-lo, com uma última olhada para o rapaz, o motorista prontamente identifica as cores da camisa dele como sendo do Esporte Clube Bahia, time popular do nordeste e de onde ele provavelmente veio para tentar a vida em outra região. Com tais informações assumidas, o motorista decide estacionar em outro local, mais seguro e protegido. Ao chegar em seu escritório se depara com uma jovem muito bonita, loira e de corpo escultural andando por ali e logo supõe se tratar na nova secretária do chefe. E durante o resto do seu dia esta pessoa caminha por diversos locais, restaurantes, lojas, salas e vai encontrando e categorizando pessoas, criando e confirmando expectativas sobre como essas podem e devem agir.]

Dados do IBGE afirmam que grande parte da população brasileira é residente de centros urbanos, então é possível perscrutar a influência dessa vida urbana na forma que as pessoas se comportam, e mais, como se dão esses comportamentos, com destaque para o processo de categorização e estereotipização diária, desenvolvendo um raciocínio acerca da influência desses processos na vida cotidiana.

Já que argumentos cognitivistas afirmam que o mundo complexo em que vivemos exige o uso de sistemas de aprendizagem complementares, seria então fundamental para a vida como conhecemos nos centros urbanos um uso ainda mais acentuado destas do que no campo, devido à quantidade de informações que se recebe nas cidades. Há, então, a capacidade de entender a realidade de duas formas diferentes, uma que torna os indivíduos capacitados a aprender e lidar com o previsível, e outra que seria caracterizado por uma grande plasticidade, sendo capaz de analisar diferentes variáveis, se comportando de forma mais adequada a elas.

O pensamento categórico permite que se perceba as pessoas que acaba de se conhecer a partir de crenças gerais e antigas armazenadas na memória, e permitindo que nós já tenhamos expectativas sobre o que nos espera. A possibilidade de podermos ter os pensamentos orientados pelas categorias que são construídas com a história de vida permite que lidemos tanto com situações corriqueiras como ir a um shopping à procura de algum item e sabermos que vamos encontrar auxílio com um vendedor assim que o identificamos, quanto com situações raras, mas previsíveis em decorrência da experiência de como lidar com semelhantes, como ir ao mesmo shopping e, ao não encontrar o vendedor, pedir auxílio a alguém que aparente poder ajudar. Tal processamento permite também lidar com situações totalmente divergentes do que se teria uma prévia ideia, como, por exemplo, ir novamente ao shopping e encontrar um vendedor que se comporte totalmente fora dos padrões habituais, sendo agressivo com clientes que pedissem sua assistência. Sendo assim, cria-se rótulos verbais para a classificação de indivíduos como membros de um grupo que então – a partir da estrutura de conhecimento a respeito da categoria ativada – permite uma série de inferências de julgamento e impressões sobre a categoria (algumas certas, mas uma parcela significativa baseada em julgamentos estereotipados).

Assim, pode-se perceber que é natural e, em alguns casos, extremamente valioso que automaticamente categorizemos grupos sociais e comportamentos de outrem, construindo um repertório de conduta e reação. O raciocínio categórico parece fundamental para a sobrevivência, pois permitiu desde épocas remotas ao homem tratar o novo e o inesperado a partir de crenças mais gerais e antigas.

Todavia, esse raciocínio não se encontra além de controvérsias. Estudos revelam que apesar dos centros urbanos gerarem uma forte categorização, as representações estereotipadas se manifestam de forma menos intensa nos centros urbanos de maior tamanho. Uma possível resposta para esse problema é que provavelmente por serem fonte de uma enorme rede de possibilidades de contradição de estereótipos, a vida urbana apesar de incitar os pensamentos estereotipados pela necessidade de criar esquemas de comportamento para diferentes pessoas, acaba por também propiciar oportunidades infinitas de contato com pessoas diferentes, algumas que confirmam os estereótipos, e outras tanto que destoam do pensamento categorizado. Utilizando a mesma personagem do início do texto, vamos supor que no outro dia ela:

[Ao sair de sua casa em direção ao trabalho se depara com a porta da casa vizinha novamente aberta, mas agora vê a senhora conversando alegremente com um dos vizinhos que a chama de “vó”, ao trocar poucas palavras com eles, se descobre que a senhora estava ali para fazer uma pequena visita a seu neto, mas organizada – e preocupada – como é, resolveu arrumar a bagunça do neto e do colega. No trajeto para o seu trabalho o semáforo novamente se ilumina em vermelho, mas ao parar, o senhor que o abordara anteriormente se mostra dono de uma voz invejável e a única coisa que quer é ser um cantor profissional, dando-lhe um panfleto para seu próximo evento. Depois de dirigir por algum tempo, seu carro começa a apresentar problemas mecânicos, e imediatamente alguns motoristas solícitos param ao seu lado e o ajudam, resolvendo o problema em um instante. Ao chegar ao seu trabalho, esta pessoa encontra a mesma vaga no estacionamento do outro dia, e quando está prestes a estacionar ouve novamente um grito de alerta e prontamente pisa no freio, pelo retrovisor o mesmo rapaz do outro dia sinaliza e se aproxima, informando que aquela vaga está localizada abaixo de uma árvore podre e muito próxima de deixar seus galhos no carro de alguém e que por isso ninguém estava estacionando ali. O rapaz se apresenta como um fiscal que está alertando aos motoristas enquanto não se tomam providências e seu uniforme azul, vermelho e branco, quem diria, é o padrão da empresa que derrubará a árvore, ele na verdade nem gosta de futebol. Ao chegar ao escritório, refletindo sobre tantas descobertas, a nossa personagem acaba por encontrar mais uma grande surpresa, a jovem muito bonita, loira e de corpo escultural está falando a todos os funcionários e se apresentando como a nova CEO da empresa, diretamente superior a seu chefe. E assim, nossa personagem passa o resto do seu dia categorizando e se surpreendendo com as novas informações encontradas.]

Como visto, é possível encontrar durante a vida oportunidades não só para confirmar os estereótipos, como também para ir de encontro ao raciocínio estereotipado. Entretanto, afirmar que o ser humano tende a inibir o raciocínio categórico seria um erro, ocorre exatamente o contrário, mesmo com algumas evidências que vão de encontro a elas, não costumamos ser flexíveis nas crenças estereotipadas, uma vez que alguém é inserido em alguma categoria estereotipada, dificilmente há reflexão sobre o assunto.

E quais seriam as condições que disparariam o raciocínio categórico? Provavelmente, ele surge quando falta ao indivíduo percebedor motivação, tempo ou capacidade cognitiva para lidar com as demandas requeridas durante as interações sociais, ainda assim, não necessariamente um indivíduo que viva em uma cidade vai estereotipizar mais ou menos do que um que viva no ambiente rural, o que fará a diferença será muito mais a qualidade do que a quantidade das informações e dos contatos interpessoais nos quais ele vai obter informações sobre os grupos sociais. Assim, se entende que apesar do efeito do ambiente em que se vive, o contexto em que as informações serão entendidas será de importância impar para um pensamento menos estereotipado e mais justo acerca das pessoas.
 

ResearchBlogging.org  
Pereira, M. E. (2008). Cognição, categorização, estereótipos e vida urbana. Ciências & Cognição, 13 (3), 280-287

5 comentários:

André Rabelo disse...

ótimo o texto! tive a honra de conhecer pessoalmente o Marcos Emanoel (autor do artigo citado no texto) e assistir a um simpósio muito bacana sobre cognição social com ele comentando a pesquisa que ele desenvolve sobre esteriótipos e preconceito. Para quem quiser se aprofundar no tema explorado aqui, eu recomendo o recente lançamento nacional do livro "Psicologia Social: temas e teorias". o livro tem um capítulo do Marcos Emanoel sobre cognição social muito bacana, de material em português certamente essa é uma das referências mais importantes que temos.

abraço!

André Rabelo disse...

aaah, esqueci de comentar sobre o ótimo blog do Marcos Emanoel sobre esteriótipos e psicologia social, fica ai mais um complemento para quem se interessar pelo tema:

http://estereotipos.net/

abraço!

Marcus Vinicius Alves disse...

É verdade, André, esse capítulo do Marcos é excelente e explica com muita propriedade como nossa cognição funciona de forma ímpar para os empreendimentos sociais.

O prof. Marcos é um amigo e foi meu orientador de pesquisa científica por mais de dois anos e sempre tive a oportunidade de acompanhar ótimas publicações dele em diversos assuntos. Textos que estão disponíveis pela internet e de graça.

E a quem interessar, além do blog, segue o site do grupo de pesquisa, que está bem desatualizado, mas possui alguns links para publicações: http://www.psicologiasocial.ufba.br/publicacoes.html

André Rabelo disse...

Eita Marcus, só vi agora no seu lattes que você já fez coisa pra caramba com o Marcos Emanoel! que legal, você provavelmente teve uma grande formação como pesquisador sendo orientado por ele. vai fazer o mestrado sob a orientação dele?

Temos que trocar mais idéias Marcus, me manda o seu email depois!

abraço!

André Rabelo disse...

opss, acabei de encontrar o seu email nos "contatos" hehe

abraço!

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