Autor: Gregory W. Lester
Tradução: Marcus Vinicius Alves


Tendo em vista que as crenças se desenvolvem para aumentar nossa habilidade de sobrevivência, elas são biologicamente projetadas para ser fortemente resistentes às mudanças. Para mudar crenças, céticos precisam apontar os problemas de significados e as implicações de “sobrevivência” do cérebro em adição à discussão das evidências.

Sendo o princípio básico tanto do pensamento cético quanto da investigação científica de que crenças podem estar erradas, é normalmente confuso e irritante para cientistas e céticos que as crenças das pessoas não mudem, mesmo quando em confronto de evidências que as neguem. Como, nos perguntamos, as pessoas são capazes de sustentar crenças que contradizem os dados?

Essa perplexidade pode produzir uma tendência infeliz por parte dos pensadores céticos de depreciar e menosprezar pessoas cujas crenças não mudem em resposta às evidências. Elas podem ser vistas como inferiores, estúpidas, ou loucas. Essa atitude é engendrada pela falha dos céticos de entender o propósito biológico das crenças e a necessidade neurológica de que elas sejam resilientes e insistentemente resistentes às mudanças. A verdade é que por sua forma de pensar rigorosa, muitos céticos não possuem um entendimento claro ou racional do que são as crenças e porque até as mais absurdas delas não desaparecem com facilidade. Entender o propósito biológico das crenças pode ajudar os céticos a serem bem mais efetivos em confrontar crenças irracionais e em comunicar conclusões científicas.


Biologia e Sobrevivência

O propósito primário do nosso cérebro é nos manter vivos. Certamente ele faz mais que isso, mas sobrevivência sempre é seu propósito fundamental e sempre vem primeiro. Se nos machucarmos a ponto de que nossos corpos só tenham energia suficiente para manter a consciência ou os nossos corações batendo, mas não os dois, o cérebro não terá problemas em optar por nos colocar em coma (sobrevivência antes de consciência), ao invés de um estado de alerta fadado à morte (consciência antes de sobrevivência).

Por toda atividade do cérebro servir ao propósito fundamental de sobrevivência, o único caminho de entender com acurácia qualquer função cerebral é examinar seu valor como ferramenta de sobrevivência. Mesmo a dificuldade de tratar com sucesso transtornos comportamentais como a obesidade e o vício só pode ser entendida ao examinar suas relações com a sobrevivência. Qualquer redução na ingestão calórica ou na disponibilidade de uma substância a que um indivíduo é viciado sempre é percebida pelo cérebro como uma ameaça à sobrevivência. Como resultado, o cérebro poderosamente sugere o comer em excesso ou o abuso da substância, produzindo as familiares mentiras, fugas, negações, racionalizações, e justificativas comumente exibidas por indivíduos sofrendo com esses distúrbios.


Sentidos e Crenças

Umas das principais ferramentas do nosso cérebro para garantir a sobrevivência são os nossos sentidos. Obviamente, nós precisamos ser aptos a perceber com precisão o perigo, a fim de tomar medidas destinadas a nos manter seguros. Para sobreviver, precisamos ser capazes de ver o leão vindo em nossa direção quando saímos de nossas cavernas ou ouvir o intruso invadindo nossa casa no meio da noite. 

Apenas os sentidos, no entanto, são inadequados como efetivos detectores de perigo, pois eles são muito limitados, tanto em alcance quanto em escopo. Podemos ter contato sensorial direto com apenas uma pequena parte do mundo a cada momento. O cérebro considera este um problema significativo, porque mesmo a vida comum do dia a dia exige que estejamos constantemente em movimento dentro e fora do alcance da nossa percepção do mundo como ele é agora. Entrar em um território que nós não vimos ou ouvimos previamente nos coloca na posição perigosa de nao possuir qualquer aviso prévio de potenciais perigos. Se eu entrar em uma construção desconhecida em uma parte perigosa da cidade, minhas chances de sobrevivência diminuem porque não tenho como saber se o telhado está prestes a entrar em colapso ou alguém armado me espera no próximo corredor.

Introduzindo as crenças. “Crença” é o nome que damos à ferramenta de sobrevivência do cérebro, desenvolvida para aumentar e melhorar a função dos nossos sentidos de identificação de perigo. Crenças estendem o alcance dos nossos sentidos para que possamos detectar melhor o perigo e, assim, aumentar nossas chances de sobrevivência à medida que avançamos para dentro e fora de territórios desconhecidos. Crenças, em essência, são como "detectores de perigo de longo alcance" do nosso cérebro.

Funcionalmente, nossos cérebros tratam as crenças como "mapas" de partes do mundo com as quais nós não temos contato sensorial imediato. Enquanto estou sentado em minha sala não posso ver meu carro. Embora eu o tenha estacionado em minha garagem há pouco tempo, utilizando apenas dados sensoriais imediatos eu não sei se ele ainda está lá. Como resultado, neste momento as informações sensoriais são de pouca utilidade para mim em relação ao meu carro.

Para encontrar o meu carro com algum grau de eficiência o meu cérebro deve ignorar as informações sensoriais atuais (que, se usadas em um sentido estritamente literal, não só não me ajudam a localizar o meu carro, como em verdade indicam que ele não existe mais) e por sua vez recorrer ao seu mapa interno da localização do meu carro. Esta é a minha crença de que o meu carro ainda está em minha garagem, onde o deixei. Ao utilizar a minha crença em vez de dados sensoriais, meu cérebro pode "saber" algo sobre o mundo com o qual não tenho contato sensorial imediato. Essa capacidade "estende" o conhecimento e o contato do meu cérebro com o mundo.

A característica da crença de extensão do contato com o mundo além do alcance dos nossos sentidos imediatos melhora substancialmente nossa capacidade de sobrevivência. Um homem das cavernas tem uma probabilidade muito maior de permanecer vivo se ele é capaz de sustentar a crença de que existem perigos na selva, mesmo quando seus dados sensoriais indiquem que não há nenhuma ameaça imediata. Um policial estará substancialmente mais seguro se ele ou ela puder continuar a acreditar que alguém parado por uma infração de trânsito pode ser um psicopata armado, com um impulso de matar, mesmo que apresente uma aparência notavelmente inofensiva.


Além dos Sentidos

Tendo em vista que as crenças não precisam de dados sensoriais imediatos para ser capazes de prover o cérebro com valiosas informações para a sobrevivência, elas possuem a função de sobrevivência adicional de fornecer informações sobre aspectos da vida que não lidam diretamente com entidades sensoriais. Esta é a área das abstrações e princípios que envolvem coisas como "razões", "causas" e "significados." Eu não posso ouvir ou ver a "causa" chamada "zona de baixa pressão" que faz com que uma tempestade atrapalhe os meus planos do dia, então a minha capacidade de acreditar que a baixa pressão é a causa me ajuda. Se eu fosse depender estritamente de meus sentidos para determinar a causa da tempestade, eu não poderia dizer o porquê dela ter ocorrido. Pelo que eu sei, ela pode ter sido arrastada por duendes voadores invisíveis que preciso acertar com a minha espingarda, se eu quiser clarear o céu. Portanto, a confiança do meu cérebro em minha "crença" na causa chamada de "baixa pressão", ao invés de dados sensoriais (ou, como no caso do meu carro, a ausência deles) auxilia na minha sobrevivência: Eu evito ser preso com diversos indivíduos perigosos por sair atirando para o céu em uma caça irrefreável a duendes voadores.


A Resiliência das Crenças

Sendo os sentidos e crenças duas ferramentas para a sobrevivência que evoluíram para aumentar uma à outra, nosso cérebro os considera separados, mas igualmente importantes fornecedores de informações para a sobrevivência. A perda de qualquer um dos dois nos coloca em perigo. Sem os nossos sentidos não poderíamos saber sobre o mundo dentro da nossa esfera de percepção. Sem as nossas crenças não poderíamos saber sobre o mundo exterior aos nossos sentidos ou sobre significados, razões, ou causas.

Isto significa que as crenças são projetadas para operar independentemente dos dados sensoriais. Em verdade, todo o valor de sobrevivência das crenças é baseado em sua capacidade de persistir em face de evidências contraditórias. Não é esperado que crenças mudem facilmente ou simplesmente ao ser confrontadas a evidências que as desmintam. Se o fizessem, seriam praticamente inúteis como ferramentas para a sobrevivência. Nosso homem das cavernas não iria durar muito se a sua crença em potenciais perigos na selva evaporasse cada vez que sua informação sensorial afirmasse que não há nenhuma ameaça imediata. Um policial incapaz de acreditar na possibilidade de um assassino à espreita por detrás de uma aparência inofensiva poderia facilmente terminar ferido ou morto.

Dessa forma, para o nosso cérebro, não há absolutamente nenhuma necessidade de que evidências e crenças concordem entre si. Cada um dos dois evoluiu para aumentar e complementar um ao outro ao entrar em contato com diferentes aspectos do mundo. Eles são projetados para serem capazes de discordar. É por isso que cientistas podem acreditar em Deus e pessoas que geralmente são bastante razoáveis ​​e racionais podem acreditar em coisas para as quais não há dados confiáveis​​, tais como discos voadores, telepatia e psicocinese.

Quando os dados e as crenças entram em conflito, o cérebro não dá automaticamente a preferência para aos dados. É por isso que as crenças – mesmo crenças ruins, crenças irracionais, crenças tolas, ou crenças loucas – muitas vezes não desaparecem quando confrontadas com evidências contraditórias. O cérebro não se importa se a crença é corroborada ou não pelos dados. Ele apenas se importa com o quanto a crença é útil para a sobrevivência. Ponto final. Assim, enquanto a parte científica e racional do nosso cérebro pode pensar que os dados deveriam se sobressair às crenças contraditórias, em um nível mais fundamental de importância o nosso cérebro não possui tal viés. É extremamente reticente em abandonar suas crenças. Como um velho soldado com sua velha arma que não acredita de verdade que a guerra acabou, o cérebro acaba se recusando a se render mesmo que os dados digam que deveria.


Crenças “Inconsequentes”

Mesmo crenças que não pareçam claramente ou diretamente ligadas à sobrevivência (como a habilidade de nosso homem das cavernas em acreditar em perigos potenciais) ainda estão intimamente ligadas à sobrevivência. Isto se dá porque as crenças não ocorrem individualmente ou em um vácuo. Eles estão relacionados um à outra em um sistema de forte integração que cria a visão fundamental do cérebro da natureza do mundo. É deste sistema que o cérebro depende a fim de experimentar a consistência, o controle, a coesão e a segurança no mundo. Ele deve manter o sistema intacto para poder sentir que a sobrevivência está sendo alcançada com sucesso.

Isto significa que mesmo crenças aparentemente pequenas e inconsequentes podem ser tão pertinentes para a totalidade da experiência de sobrevivência do cérebro quanto as crenças que são “obviamente” ligadas à sobrevivência. Assim, tentar mudar qualquer crença, não importa o quão pequena ou boba ela possa parecer, pode produzir efeitos em cascata por todo o sistema e, consequentemente, ameaçar a experiência de sobrevivência do cérebro. É por isso que as pessoas estão comumente dispostas a defender suas crenças, mesmo que aparentemente pequenas ou superficiais. Um criacionista não tolera acreditar na precisão dos dados que indicam a realidade da evolução não pela exatidão ou inexatidão dos dados em si, mas porque mudar até mesmo uma crença relacionada a assuntos da Bíblia e da natureza da criação rachará todo um sistema de crenças, uma visão fundamental de mundo e, em última análise, a experiência de sobrevivência do seu cérebro.


Implicações para os céticos

Pensadores céticos devem entender que por causa do valor de sobrevivência das crenças, evidências que as confrontem raramente, talvez nunca, vão ser suficientes para mudá-las, mesmo com pessoas “normalmente tão inteligentes”. Para efetivamente mudar as crenças, céticos devem atentar para o seu valor de sobrevivência, não apenas em seu valor de precisão dos dados. Isso envolve uma infinidade de elementos.

Primeiro, os céticos não devem esperar que crenças mudem simplesmente devido aos dados ou supor que as pessoas são estúpidas porque suas crenças não mudam. É preciso evitar se tornar por demais crítico ou depreciativo em resposta à resistência das crenças. As pessoas não são necessariamente idiotas só porque suas crenças não cedem a novas informações. Os dados sempre são necessários, mas raramente são suficientes.

Em segundo lugar, os céticos devem aprender a sempre discutir não apenas o tópico específico abordado pelos dados, mas também as implicações que a mudança das crenças relacionadas terá para a visão fundamental de mundo e sistema de crenças dos indivíduos afetados. Infelizmente, abordar os sistemas de crenças é uma tarefa muito mais árdua e complicada do que simplesmente apresentar evidências contraditórias. Céticos devem discutir o significado dos seus dados em face da necessidade do cérebro para preservar seu sistema de crenças a fim de manter uma ideia de totalidade, consistência e controle. Os céticos devem se dispor a discutir problemas filosóficos fundamentais e a ansiedade existencial que fervilha quando quaisquer crenças são desafiadas. A tarefa é, em cada detalhe, tão filosófica e psicológica quanto científica e baseada em evidências.

Terceiro, e talvez mais importante, céticos devem sempre apreciar o quão difícil é para as pessoas terem suas crenças confrontadas. É, literalmente, uma ameaça ao senso de sobrevivência do seu cérebro. É completamente normal que as pessoas fiquem na defensiva em tais situações. O cérebro se sente como que lutando por sua vida. É lamentável que isso possa acarretar em comportamentos provocativos, hostís e até cruéis, mas é compreensível também.

A lição para os céticos é entender que as pessoas geralmente não possuem a intenção de serem más, grosseiras, teimosas ou estúpidas quando elas são desafiadas. É uma luta pela sobrevivência. A única maneira eficaz de lidar com este tipo de defesa é a de desarmar o conflito ao invés de inflamá-lo. Tornar-se sarcástico ou menosprezar o outro simplesmente dá às defesas da outra pessoa um ponto de apoio para impelir um “toma lá, dá cá” que justifica os seus sentimentos de estar sendo ameaçado ("É claro que lutamos contra os céticos, olha como eles são babacas e hostís!"), ao invés de se focar na verdade.

Os céticos só vão ganhar a guerra pelas crenças racionais ao continuar, mesmo quando confrontados com respostas defensivas dos outros, a usar comportamentos que são infalivelmente dignos e cuidadosos, demonstrando respeito e sabedoria. Para que os dados falem alto, os céticos devem sempre se abster de gritar.

Finalmente, deve ser reconfortante para todos os céticos lembrar que a parte verdadeiramente mais fantástica de tudo isto não é que tão poucas crenças mudem ou que as pessoas podem ser tão irracionais, mas que as crenças de qualquer um podem se modificar. A habilidade dos céticos para alterar suas próprias crenças em resposta às evidências é um verdadeiro dom; uma habilidade única, poderosa e preciosa. É genuinamente uma "função cerebral superior" na medida em que vai de encontro a algumas das mais naturais e biologicamente fundamentais necessidades. Os céticos devem entender o poder e, verdadeiramente, o risco que esta habilidade os concede. Eles têm em sua posse uma habilidade que pode ser assustadora, capaz de mudar vidas, e capaz de induzir dor. Ao direcionar esta habilidade a outrem ela deve ser usada com cuidado e sabedoria. Desafiar crenças deve sempre ser feito com zelo e compaixão.

Céticos devem se lembrar de sempre manter os olhos no objetivo. Eles devem ver à longo prazo. Eles devem se esforçar em tentar vencer a guerra pelas crenças racionais, não se envolver em uma luta até a morte por qualquer batalha em particular com uma pessoa em particular ou uma crença em particular. Não só as evidências e métodos dos céticos devem ser idôneos, diretos e imparciais, como também sua atitude e conduta.


Lester, G. W. (2000). Why Bad Beliefs Don't Die. Skeptical Inquirer., 24 (6)


Gregory W. Lester, Ph.D. é psicólogo e professor da University of St. Thomas em Houston, Texas, e atua em Houston e em Denver, Colorado.


A correria das cidades, a falta de tempo para realizar todas as tarefas requeridas diariamente, o afastamento das pessoas com que se convive, o embotamento afetivo e a presença cada vez mais intensa de estímulos distratores tem feito vir à tona um número expressivo de casos em que pessoas se encontram inquietas e incapazes de focar sua atenção, e assim, a mídia vai considerando esta incapacidade como um possível mal do século. Veja esse vídeo:







Achei esse vídeo interessante, é de um grupo que resolveu filmar uma série chamada “Fala que eu não te escuto”, nele, um dos integrantes pede informações para as pessoas e aproveita emendando frases absurdas em sua fala. Frases estas que acabam passando despercebidas. No vídeo as perguntas vão progressivamente sendo feitas com mais clareza, mais altas e, inclusive, com auxílios visuais, como tirar a camisa para tentar fazer o estímulo ser mais perceptível. Mesmo assim as pessoas se atém somente em responder à pergunta feita. Seria esse apenas um sinal de desinteresse com o dito após a pergunta ou uma incapacidade relacionada ao processamento corrente da própria pergunta feita e que interfere a apreensão de informações que seriam possivelmente irrelevantes?



A atenção pode ser definida como a alocação preferencial de recursos cognitivos para eventos que sejam mais relevantes para o indivíduo, é um tipo de processamento que permite a seleção de estímulos, e se caracteriza como o nome dado ao caráter direcional e à seletividade dos processos mentais organizados. A atenção não é mediada por uma única região cerebral, e nem pelo cérebro como um todo, mas por redes neurais, sendo uma delas difusa, que se caracteriza pela atenção global, ocorrendo no Tálamo e nos dois hemisférios cerebrais, e a focal, possuindo especialização espacial, se localizando em regiões frontais e parietais, principalmente no hemisfério direito do cérebro.



A atenção, ao permitir o processamento de uma quantidade limitada de informações de forma qualitativamente independente, pode ser dividida em subtipos, como a atenção seletiva, onde ocorre o foco em um estímulo de cada vez. A atenção seletiva ocorre quando há a seleção de parte de estímulos disponíveis para o processamento, onde as outras informações disponíveis ficariam então ‘suspensas’, direcionando o foco para estímulos relevantes em detrimento de distratores – tanto internos (que seriam traços de memória), quanto externos (como exemplo, no vídeo, a fala ignorada pelas pessoas). A atenção seletiva pode modular o processamento de informação antes mesmo de serem apresentadas tarefas ou estímulos, sendo crucial para a eficiência da tarefa posterior. Ou seja, quando um carro se aproxima de um indivíduo parado na rua, já se inicia uma preparação para a tarefa que está por vir – pois a pessoa previamente deve supor que alguma informação será pedida - e assim, o processamento direcionado para a resolução da tarefa, uma seleção que exclui qualquer informação desnecessária. Outra característica do processo atencional é que nele ocorre também uma alternância no direcionamento do foco dos estímulos, poderíamos supor que se o nome dessas pessoas fosse chamado ela tenderia a prestar atenção novamente ao que falava o indivíduo, mesmo que somente em algumas informações, ou, por exemplo, se ao invés de um homem sem camisa, estivesse na direção do veículo uma mulher, pois tal quadro é muito mais incomum.

Diversas funções cognitivas dependem da atenção. A incapacidade de selecionar estímulos e prestar atenção neles acaba por influenciar também o esquecimento, pois a atenção é altamente relacionada com a memória, a recordação de informações necessitam antes que estas tenham sido percebidas de forma precisa, com atenção. Ademais, esta incapacidade favorece o automatismo, ou seja, onde as pessoas agem sem ter um controle consciente das suas ações, devido, por exemplo, a ter um grande número de estímulos disponíveis e pouco tempo para selecioná-los. 

Outro fator que age diretamente na atenção é o interesse e a necessidade do indivíduo, pois estes motivam e guiam a seleção dos estímulos, como exemplo temos o dito pelas mães sobre os filhos que conseguem prestar atenção em um videogame ou um programa de televisão, mas não às suas “sugestões” de arrumar o quarto ou nas instruções básicas do manual materno de como evitar morrer por hipotermia ao usar o casaco ao sair de casa (em qualquer horário, com qualquer temperatura). Diversas desordens psiquiátricas sofrem déficits atencionais, como exemplo, o famoso Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). No TDAH o que acontece não é uma incapacidade de selecionar os estímulos mais interessantes para si, mas sim o impedimento da 'inibição ativa' de estímulos, ou seja, a criança ou adulto não consegue impedir que estímulos distratores façam com que ela perca a atenção em uma tarefa, por mais motivadas que estejam a conseguir esse foco. Essa é uma compreensão importante do TDAH, pois como é um transtorno infantil e muitas vezes relacionado com um mau desempenho escolar, acabam-se criando justificativas plausíveis, porém irreais, para a desatenção que acomete esses indivíduos, como a pobreza, diferenças entre classes sociais, uma má relação familiar, entre outros. A atenção é sim influenciada por diversos fatores, tanto ambientais quanto internos, tanto sociais quanto fisiológicos, e mesmo o sistema de crenças e a memória dos sujeitos, mas os déficits atencionais encontrados em crianças e adultos com TDAH estão presentes em famílias de qualquer classe social, com crianças bem ou mal estimuladas, e em famílias estruturadas ou não. Todos esses pontos podem agravar um caso de TDAH, mas não causá-lo.



Voltando ao vídeo, ele seria um retrato do desleixo com o ouvir ou é uma apresentação da forte concorrência entre o processamento requerido com o pedido de informação e a capacidade de atenção? Em texto anterior, foi falado sobre a categorização que ocorre entre as pessoas e como uma indisponibilidade atencional facilita pensamentos estereotipados, igualmente, com a sobrecarga do processamento ao realizar diversas tarefas, o resultado é uma seleção de estímulos que acaba por não se considerar as frases ditas posteriormente. No vídeo do "Fala que eu não te escuto" a tarefa interfere na possível aquisição das outras informações. 

Só mais um vídeo, esse de uma campanha antiga e você já deve conhecer, mas vale a pena vê-lo de novo:




Resumindo, a Atenção é importante e existe por ter sido um processo que durante a evolução foi fundamental para a sobrevivência, permitindo o foco em informações mais pertinentes para esta, e até hoje pode ser a linha que garante que algumas vidas sejam salvas ou pelo menos não sejam tiradas, como em acidentes de trânsito. Ou quando nós formos explodir uma bomba no Ibirapuera algum dia...



Hã? 


 ResearchBlogging.orgBenczik, E; & Casella, E. B. (2007). Atenção. Alguns Domínios da Avaliação Psicológica.
 
Coutinho, G.; Mattos, P.; & Abreu, N. (2010). Atenção. Avaliação Neuropsicológica. Porto Alegre: Artmed.

Karatekin, C. (2001). Developmental disorders of attention. In C. A. Nelson & M. Luciana (Eds.), Handbook of Developmental Cognitive Neuroscience (pp. 561-576). Cambridge, MA:  MIT Press.


Fundada em 1930 por Konrad Lorenz e Nikolas Tinbergeen, a Etologia é uma área do conhecimento relativamente nova. O foco das questões da ciência etológica é o comportamento animal e suas nuances. A Etologia visa observar o comportamento animal – humano ou não – a partir de princípios que coadunem com as ideias básicas advindas da teoria da evolução, na lógica da função adaptativa dos comportamentos e da seleção destes comportamentos por meios naturais. Para a Etologia, então, o comportamento é produto e instrumento do processo evolutivo, sendo selecionado em função ao que se refere à capacidade de sucesso reprodutivo que surge da existência dele e possui um alto grau de determinação genética.

O Etólogo ao se deparar com um comportamento tende a fazer quatro perguntas que são fundamentais para o entendimento do comportamento animal em pelo menos parte de toda a sua complexidade. As perguntas feitas comumente pelos estudiosos são: a) Qual é a função do comportamento estudado? (do ponto de vista adaptativo); b) Qual a causa deste comportamento? (fatores causais próximos); c) Como tal comportamento se desenvolve ao longo da vida do indivíduo? (ontogênese); e, por fim, d) Como o comportamento se desenvolveu no decorrer da história evolucionária? (filogênese).

O alvo dos estudos feitos por pesquisadores da etologia podem tomar formas tão diferentes quanto a imensa variedade dos animais presentes do planeta. Os cientistas do comportamento animal tendem a estudar uma gama de tópicos só comparável ao leque da própria psicologia, pois podem em suas pesquisas enfocar desde o comportamento sexual de pequenos animais e insetos até as funções executivas de primatas, buscando com esse conhecimento, entender um pouco mais destes seres com quem a humanidade convive, e assim, entender também um pouco mais sobre os caminhos evolutivos que parecem ter direcionado cada espécie a ser o que se apresenta hoje, inclusive o ser humano.

Em paralelo ao surgimento da Etologia na década de 30, a Psicologia vivia o auge da abordagem comportamentalista e assim este novo olhar acabou por ser fortemente influenciado pelo ideal behaviorista de estudo científico, que visava estipular como objeto do estudo experimental da psicologia o comportamento observável e os processos referentes à interação destes, a partir de experimentos bem delineados, que imputava às respostas comportamentais uma relação causal com estímulos previamente apresentados e a consequente confluência ambiental resultante da ação primeva. Mesmo assim, embora o estudo do comportamento animal por anos tenha se atido à observação inexorável de respostas comportamentais para estímulos diversos e suas consequências, nunca se limitou a fazer perguntas que extrapolassem o escopo teórico e a limitação  tecnológica vivida pela psicologia da época. Ao observar cada espécie em sua particularidade a Etologia acabou por dar ênfase às especificidades de cada uma e ao estudo do ambiente natural onde tais peculiaridades ocorrem, sendo assim, de forma alguma poderia ser estudada que não segundo uma maior flexibilidade metodológica.

O estudo da cognição animal se limitava tanto quanto o estudo das capacidades cognitivas humanas sob a égide do raciocínio comportamentalista, todavia, como exemplo de diversas pesquisas que pretendiam entender um pouco mais sobre este aspecto – na época ainda de improvável comprovação – é possível lembrar pesquisas feitas por teóricos direcionados a qualquer uma das duas disciplinas, tanto a Psicologia quanto a Etologia se permitiam conjecturar sobre as capacidades da cognição humana. Embora alguns pioneiros na testagem da capacidade e atuação cognitiva de animais não sejam especificamente denotados como estudos de etologia, pois tinham como pretensão teórica testar hipóteses referentes a diferentes saberes da psicologia com perspectivas comparativas como aprendizagem, memória e outros, é possível estabelecer uma grande relação de conhecimento que advém destes estudos, e que reflete no desenvolvimento de teorias acerca dos processos mentais de animais não humanos. 

Um dos primeiros etólogos, laureado com um prêmio Nobel, Konrad Lorenz, estudou além de comportamentos agressivos nos animais – posteriormente analisando a ocorrência deles em humanos – também a intensidade da primeira formação mnemônica de aves e que se constitui duradoura para toda a vida, processo esse chamado de estampagem (imprinting), onde alguns pássaros ao nascer tendem a seguir o primeiro ser móvel que observam. As peculiaridades desse processo de estampagem ainda não foram totalmente descobertas mesmo nos tempos atuais, sendo encontradas em diversos tipos de animais, e servido de interconexão com processos do desenvolvimento em humanos. 

Lorenz sendo seguido pelos seus "filhos"

Além de Lorenz, outros estudos podem ser lembrados, mesmo antes da criação da Etologia. Em 1925, divergências sobre como as capacidades de aprendizagem humanas eram apresentadas na época foram testadas pelo psicólogo Wolfgang Köller, um dos mais famosos psicólogos da teoria da forma, buscando ir de encontro a teorias conexionistas de Thorndike que estavam em voga e utilizando como participantes de seus estudos chimpanzés, assim representando a possibilidade da cognição humana a partir dos processos mentais destes primatas. Os estudos de Thorndike focavam na capacidade dos animais de aprenderem a partir da tentativa e erro e da recompensa ganha após uma ação aprendida, para demonstrar a existência de processos que não os quais intricados nas teorias conexionistas, Köller desenhou um experimento onde para alcançar um determinado alimento, o chimpanzé participante de sua pesquisa deveria mover uma caixa de forma que pudesse subir nela a ponto de obter sua recompensa. O observado por Köller foi que, após uma série de tentativas frustradas, o animal parecia se resignar à impossibilidade de obter o seu prêmio, sentando distante e observando a sua situação, apenas para posteriormente voltar à ação e em uma tentativa apenas conseguir ser bem sucedido. O que se entendeu desse experimento foi que, possivelmente, enquanto estava sentado o animal teria chegado à solução do seu problema, obtido um insight, indo de encontro ao que seria proposto pela lei da tentativa-e-erro.

O psicólogo behaviorista e teórico da aprendizagem Edward Tolman em 1948 lançou uma série de estudos que visavam discordar do autor idolatrado por psicólogos comportamentalistas, B. F. Skinner. Tolman acreditava que a aprendizagem não poderia existir apenas sob a lógica do condicionamento instrumental, mas também existia sem a ocorrência de qualquer consequência significante após a ação feita. Para Tolman, era preciso também considerar as intenções e objetivos de um sujeito ao realizar um comportamento, além da capacidade filogenética para aprender naturalmente. 

Para analisar tal hipótese, ele usou de diversos experimentos, em um deles, em um labirinto em forma de T, era concedido aos ratos um reforço apenas se fosse à direção de um dos dois braços (ex. direita). Após uma série de ocorrências, o experimentador trocava a posição inicial do rato, invertendo a posição também de onde estaria a recompensa. Sendo assim, caso o rato permanecesse indo para a posição anteriormente reforçada (ex. direita), a aprendizagem seria apenas motora ou condicionada instrumentalmente, mas caso passasse a ir para o outro lado (ex. esquerda), onde o reforço agora se encontrava, a aprendizagem do animal teria se dado não apenas pelos movimentos feitos e reforçados, mas pela sua capacidade de compreender o espaço ao redor, ao mapa cognitivo do ambiente que havia construído, o que de fato ocorreu. A essa aprendizagem por meio de mapas cognitivos se deu o nome de aprendizagem latente, pois parecia que as informações apreendidas pelos organismos não surgiriam apenas por meio de consequentes reforçadores, mas também pela intencionalidade de utilizá-la.

Os estudos em cognição animal – chamados de Etologia Cognitiva – hoje avançaram de forma considerável, a partir do avanço metodológico que veio com a Revolução das Ciências Cognitivas nas áreas de estudo do comportamento; tecnológico, a partir da criação de computadores, testes e aparelhos de análise potente de circuitos neurais; e de aporte teórico, com a formação da Psicologia Evolucionista. Essa é uma área que ainda se reserva para muitas descobertas futuras e que possui retornos interessantes para a humanidade, como a criação de radares mais perceptivos a partir de estudos com a formação de mapas cognitivos em morcegos com a sua ecolocalização ou mesmo a possibilidade de embasar descobertas comparativas sem o medo de errar por muito, como o recente estudo do brasileiro Miguel Nicolelis, que em nível basal só é possível com o conhecimento de como funciona a maquinaria neural de seus “colaboradores” – como ele mesmo chama – os animais que participam em sua pesquisa.

Lorenz, Tolman e outros em seu tempo, e cada vez mais pesquisadores nos dias atuais vão dando suas contribuições com mais e mais evidências de que a cognição complexa e multifacetada presente em humanos também se faz – qualitativamente diferente, de certo – presente nos outros animais e que este é, com toda a certeza, um campo frutífero e de grande importância não só por parte de biólogos, como psicólogos, mas além de tudo, para a ciência.


ResearchBlogging.org Paz, J. M. G. (2001). Psicologia e Etoprimatologia Cognitiva. Revista de Humanidades e Tecnologia.  

Vieira, M. L. (2005). Contribuições da Etologia para a compreensão do Comportamento Humano. Disponível em http://mbox.cfh.ufsc.br/~lpe/etologia.htm

7.9.11

Estrada Para a Consciência*

Postado por Marcus Vinicius Alves |


A seca durava já havia dez milhões de anos, e o reino dos terríveis lagartos terminara muito tempo atrás. No equador, no continente a que um dia se chamaria África, a batalha pela existência atingira um novo clímax de ferocidade, e o vencedor ainda não estava à vista. Naquela terra árida e seca, só os pequenos, os velozes ou os destemidos, conseguiam florescer ou até esperar sobreviver.

Os homens-macacos da savana não eram nada disto, e não estavam a florescer; aliás, já iam bem avançados na estrada para a extinção racial. Cerca de cinquenta deles ocupavam um grupo de cavernas sobranceiras a um valezinho ressequido, dividido por um rio parado, alimentado pelas neves das montanhas que ficavam a trezentos quilômetros para norte. Quando os tempos eram maus, o rio desaparecia completamente, e a tribo vivia à sombra da sede.
Tinham sempre fome, mas, naquela altura, quase morriam de inanição.

Quando a primeira e débil luz da madrugada entrou na caverna, Sentinela-da-Lua viu que o seu pai havia morrido durante a noite. Não sabia que o Velho era seu pai, pois tal relação estava muito para lá da sua compreensão, mas, ao olhar para o corpo magro, sentiu uma leve inquietação, antepassada da tristeza.

As duas crias já estavam a choramingar pedindo comida, mas calaram-se quando Sentinela-da-Lua lhes rosnou. Defendendo o bebé que não podia alimentar em condições, uma das mães devolveu-lhe um rugido zangado; mas ele nem sequer tinha energia para espancá-la pelo seu atrevimento.

Já fazia luz suficiente para partir. Sentinela-da-Lua pegou no cadáver enrugado e, inclinando-se, arrastou-o para a entrada da caverna. Uma vez no exterior, atirou o corpo para cima das costas e endireitou-se, único animal do mundo capaz de fazê-lo.

Entre os da sua espécie, Sentinela-da-Lua era quase um gigante. Tinha cerca de um metro e meio de altura, e, embora extremamente subalimentado, pesava mais de quarenta e cinco quilos. O seu corpo peludo e musculado estava a meio caminho entre o macaco e o homem, mas a sua cabeça encontrava-se já muito mais próxima do homem do que do macaco. A testa era baixa, e apresentava saliências por cima dos olhos, mas transportava inegavelmente nos seus genes a promessa de humanidade. Quando contemplava o hostil mundo do Plistoceno, o seu olhar continha já algo que ultrapassava as capacidades de um macaco. Naqueles olhos escuros e profundos lia-se o despertar de uma consciência - os primeiros sinais de uma inteligência que não poderia cumprir-se ainda por muito tempo, e que em breve talvez se extinguisse para sempre.

Como não havia sinal de perigo, Sentinela-da-Lua, ligeiramente embaraçado pelo seu fardo, começou a descer a encosta quase vertical que dava para a caverna. Como se houvessem estado à espera do seu sinal, os outros membros da tribo saíram dos seus lares, bastante mais abaixo na superfície rochosa, e dirigiram-se para as águas lamacentas do rio, para a primeira bebida da manhã.
Sentinela-da-Lua observou o outro lado do vale, tentando observar os Outros, mas eles não estavam à vista. Como não se viam, Sentinela-da-Lua esqueceu-os; era incapaz de ter em mente algo por muito tempo, ou mesmo focar a atenção em mais de uma coisa ao mesmo tempo.

Primeiro, tinha de se desembaraçar do Velho - não era problema em que precisasse pensar muito. Houvera muitas mortes naquela estação, uma delas na sua própria caverna; bastar-lhe-ia abandonar o corpo no sitio onde pusera o novo bebê, no último quarto da lua, e as hienas fariam o resto. Estas já estavam à espera, no local onde o valezinho se abria e entrava na savana, quase como se soubessem que ele vinha. Sentinela-da-Lua deixou o corpo debaixo de um pequeno arbusto, - todos os ossos anteriores já haviam desaparecido -, e regressou apressadamente para junto da tribo. Nunca mais pensou no pai.

As suas duas companheiras, os adultos das outras cavernas e quase todos os jovens, comiam erva entre as árvores definhadas pela seca, vale acima, e procuravam bagas, raízes suculentas, folhas e dádivas inesperadas constituídas por lagartos ou roedores pequenos. Só os bebês e os velhos mais fracos eram deixados nas cavernas; se sobrasse alguma comida ao fim do dia, talvez fossem alimentados. Se não, as hienas teriam mais um dia de sorte. Mas aquele dia foi bom - embora, claro, Sentinela-da-Lua não possuísse uma verdadeira memória do passado, e não pudesse, portanto, comparar um tempo com o outro. Encontrara uma colmeia no tronco de uma árvore morta, e saboreara a iguaria mais deliciosa que o seu povo jamais conhecera; à tardinha, conduzindo o seu grupo para casa, ainda lambia os dedos de tempos a tempos. Claro que também recebera um razoável número de picadelas, mas mal reparara nelas. Estava o mais perto que podia esperar da satisfação - pois embora ainda tivesse fome, não se sentia realmente debilitado por ela. E isso era o máximo a que um homem-macaco podia aspirar.

A sua satisfação desapareceu quando chegou ao rio. Os Outros estavam lá. Iam lá todos os dias, mas isso não tornava as coisas menos aborrecidas. Eram cerca de trinta e não se distinguiam dos membros da tribo do próprio Sentinela-da-Lua. Quando o viram chegar, começaram a dançar, a abanar os braços e a guinchar, no seu lado do rio, e o povo de Sentinela-da-Lua respondeu-lhes do mesmo modo. E isso foi tudo o que aconteceu. Embora os homens-macacos lutassem várias vezes entre si, muito raramente as suas disputas resultavam em ferimentos graves. Como não possuíam garras nem dentes caninos adaptados à luta, e estavam bem protegidos com o pelo, quase nunca infligiam golpes sérios uns aos outros. Além disso, pouca energia lhes sobrava para comportamento tão improdutivo; rosnadelas e ameaças constituíam um modo muito mais eficiente de afirmarem os seus pontos de vista.

A confrontação durou cerca de cinco minutos; a exibição acabou então tão depressa como começara, e todos se puseram a beber copiosamente na água lamacenta. A honra fora satisfeita; cada um dos grupos frisara bem o direito que tinha ao seu próprio território. Depois de tratado assunto tão importante, a tribo afastou-se pelo seu lado do rio. A pastagem mais próxima ficava a mais de um quilómetro e meio das cavernas, e tinham de partilhá-la com uma manada de grandes animais parecidos com antílopes, que aceitavam muito mal a sua presença e não podiam ser combatidos, pois possuíam ferozes punhais nas cabeças. As armas naturais de que os homens-macaco não dispunham.

Portanto, Sentinela-da-Lua e os seus companheiros mastigavam bagas, frutos e folhas, e combatiam os espasmos da fome enquanto à sua volta, combatendo pelos mesmos pastos, estava uma potencial fonte de mais comida que a que alguma vez poderiam esperar comer. No entanto, os milhares de toneladas de carne suculenta, que deambulavam pela savana e através dos matagais, não se encontravam apenas fora do seu alcance; estavam também para além da sua imaginação. No meio da abundância, morriam lentamente à fome.

A última luz do dia viu a tribo regressar às suas cavernas sem incidentes. A fêmea ferida que ficara arrulhou de prazer quando Sentinela-da-Lua lhe deu o ramo coberto de bagas que trouxera, e atacou-o avidamente. Não era lá grande alimento, mas ajudá-la-ia a sobreviver até a ferida que o leopardo lhe fizera estar sarada, e ela poder voltar a procurar comida por si própria.

Uma lua cheia erguia-se por cima do vale, e um vento gelado soprava das montanhas distantes. Ia ser uma noite muito fria - mas o frio, tal como a fome, não era assunto para grandes preocupações; fazia parte da vida.

Sentinela-da-Lua mal se mexeu quando os guinchos e gritos vindos de uma das cavernas mais baixas ecoaram pela encosta, e não precisou ouvir o rugido do leopardo para saber exatamente o que estava acontecendo. Lá em baixo, o velho Pelo Branco e a sua família combatiam e morriam na escuridão, e o pensamento de que talvez pudesse ajudar nunca atravessou a mente de Sentinela-da-Lua. A desapiedada lógica da sobrevivência excluía tais fantasias, e nem uma voz de protesto se levantou da encosta atenta. Todas as cavernas ficaram silenciosas, pois não queriam por sua vez atrair o desastre.

O tumulto foi morrendo; Sentinela-da-Lua ouviu então o som de um corpo sendo arrastado por cima das pedras. Mas durou apenas alguns segundos; depois, o leopardo abocanhou a sua presa. Sem mais ruídos, afastou-se silenciosamente, carregando a sua vítima nos dentes.

O leopardo não representaria qualquer perigo durante um dia ou dois, mas podia haver outros inimigos por aí, tirando partido do Pequeno Sol frio que só brilhava à noite. Às vezes, e desde que fosse dado o alerta, os gritos e berros chegavam para pôr em fuga os predadores menores. Sentinela-da-Lua rastejou para fora da caverna e trepou para um pedregulho que estava ao lado da entrada, onde se agachou vigiando o vale.

De todos os seres que alguma vez haviam caminhado na Terra, os homens-macacos eram os primeiros a olhar de frente para a lua. E, embora não pudesse se lembrar, quando era pequeno Sentinela-da-Lua costumava esticar-se todo e tentar tocar naquela face fantasmagórica que se erguia acima das montanhas. Nunca o conseguira, e agora já era suficientemente crescido para saber o porquê. Era mais que óbvio que primeiro teria de subir a uma árvore muito alta. Contemplava o vale, observava a lua, e estava permanentemente à escuta. Dormitou uma ou duas vezes, mas sempre com os sentidos alerta - despertaria ao menor som. Apesar de já ter vinte e cinco anos, continuava na posse de todas as suas faculdades; se tivesse sorte e evitasse acidentes, doenças, predadores e inanição, talvez sobrevivesse mais dez anos.

A noite ia-se arrastando, fria e clara, sem mais alarmes, e a lua erguia-se lentamente por entre constelações equatoriais que os olhos humanos nunca contemplariam. Nas cavernas, entre períodos de sono irregular e vigílias temerosas, geravam-se os pesadelos de gerações futuras.

Um ofuscante ponto de luz, mais brilhante que qualquer estrela, atravessou lentamente o céu.

* Este texto é uma adaptação do capítulo “Estrada para a Extinção” do livro “2001: Uma Odisséia no Espaço” de Athur C. Clark, e foi utilizado para permitir – de uma forma lúdica – conjecturas acerca de como poderia ser a cognição humana primordial.

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