24.10.12

Prisma Científico

Postado por Marcus Vinicius Alves |

Há algum tempo atrás fui convidado por amigos para participar de um blog de ciência, hoje esse blog tem crescido bastante e com o tempo e concorrência de outras várias atividades, o Cogpsi tem ficado um pouco mais parado do que deveria (eu sei, eu sei!).

Porém outros textos já estão sendo escritos, inclusive mais um da série "Quem tem medo de estatística" com o André Souza do Cognando e "Psicologia Brazuca" com o André Rabelo do Socialmente.

Por enquanto, convido você, leitor do Cogpsi, a visitar o blog Prisma Científico.

Aqui vai uma descrição da nossa proposta:

"Escrever nossas ideias sempre nos pareceu uma maneira sensata de fixá-las e, com tempo e dedicação, agir de maneira concreta a colocá-las em prática. Depois de muita reflexão e discussão com alguns colegas (hoje parceiros nessa empreitada), conseguimos tirar a ideia de seu mundo (como diria Platão) e trazê-la ao papel. Na verdade ao papel não, afinal a tecnologia já nos dominou há algum tempo. Trazer nossas ideias para este blog! E dividir! Afinal o que não é transmitido e retransmitido não perdura.

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.O Prisma Científico é uma vontade de sete amigos em escrever sobre ciência de maneira translúcida e acessível, em criar conteúdo, discuti-lo, adicionar sete comprimentos de onda no espectro das perspectivas correntes, e com a possibilidade de deixar emergir diversas frações de ideias. Deixando-as registradas, garantimos o funcionamento de nossa própria memória para não as abandonar.
.Convidamos você a refratar conosco!"
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Nesse blog, além da ciência psicológica, consigo abordar a ciência em geral e até literatura, filosofia e música, o que não acontece muito no Cogpsi, até agora seis textos meus foram publicados lá, confira:



E aqui os links para curtir o Prisma e o Cogpsi no facebook e no twitter:


COGPSI
  


PRISMA CIENTÍFICO


Maria Emília Yamamoto pode ser considerada uma das “mães” da psicologia evolucionista brasileira. Pioneira na área, ela hoje é professora na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e tem participação fundamental na promoção e no desenvolvimento da psicologia brasileira, especialmente da psicologia evolucionista (PE). Ela editou em co-autoria com a professora Maria Seidl o livro Psicologia evolucionista, primeiro manual brasileiro da área.
Assim como o Dida, a Maria Emilia veio da etologia, mas sua carreira foi se direcionando cada vez mais também para a PE. A professora Maria Emilia se tornou uma porta-voz da área e tem divulgado o seu trabalho em diversos congressos, palestras e eventos. Ela gentilmente nos cedeu uma entrevista rica, na qual foram discutidos diversos assuntos que ela, assim como muitos pesquisadores no mundo todo, tem tentando relacionar na sua pesquisa, como a evolução, a prosocialidade, a religião e a moralidade.

Maria Emilia, você pode nos contar um pouco sobre os projetos de pesquisa que você está desenvolvendo em seu grupo de pesquisa atualmente e sobre os projetos que estão a caminho?
Meu principal interesse de pesquisa é o comportamento cooperativo sob uma ótica evolucionista. Investigo os moduladores desse comportamento, principalmente sob o ponto de vista próximo. Entre esses moduladores encontram-se, principalmente, as variáveis sociais, como a influência de grupos de pertinência, a vigilância, a ocorrência de punições e sanções, a trapaça. Há muitos anos a Psicologia vem mostrando que nós, humanos, somos não apenas animais sociais, mas também animais grupais. Por essa razão, é fácil induzir o favorecimento de grupos com os quais nos identificamos e a hostilidade em relação àqueles que consideramos como rivais. Nossas pesquisas e aquelas de outros pesquisadores sugerem que essas predisposições têm suas raízes em nosso passado ancestral, que favoreceu a aptidão daqueles que as possuíam. Atualmente, embora o ambiente seja muito diferente daquele experimentado por nossos ancestrais, várias dessas predisposições permanecem e influenciam nosso comportamento. Em função de nossa predisposição em nos filiarmos a grupos, os marcadores sociais associados a eles, sejam os de escolha, como religião, time de futebol, ou aqueles próprios ao indivíduo, como etnia e naturalidade, afetam nossas escolhas de parceiros de associação e cooperação.
Uma questão anterior àquela da associação diz respeito à classificação que fazemos dos indivíduos e que resulta na atribuição de pertinência a grupos. Estamos trabalhando essa questão usando a variável etnia e contrapondo-a à questão de coalizão de grupo, e nossos resultados até o momento sugerem que a composição étnica e social do local em que as pessoas vivem afetam essa classificação.
Ainda no tema de comportamento pró-social, avaliamos a cooperação com o grupo em crianças, em situação de jogos públicos. Investigamos a influência de variáveis tais como tamanho de grupo, vigilância e feedback positivo e negativo no comportamento pró-social.
Outro tema que investigamos bastante até alguns anos atrás e estamos retomando é o do comportamento alimentar. O que comemos é fortemente influenciado pelo nosso passado evolutivo, caracterizado por escassez ou, pelo menos, irregularidade da disponibilidade de alimentos. Essas condições deram oportunidade para um tipo de comportamento que Rozin chama do dilema do onívoro, que consiste na relutância em experimentar alimentos novos, pois alimentos novos no nosso passado ancestral podiam ser tóxicos, mas, por outro lado, a tentação de incorporar novos itens à dieta, frente à escassez regular ou sazonal de alimentos. Atualmente, a probabilidade de ingerirmos alimentos tóxicos entre os disponíveis é muita baixa, mas muitos indivíduos apresentam uma reação neofóbica a alimentos não familiares, e recusam-se a ingeri-los. Investigamos quais as condições que favorecem essa reação e quais a atenuam. Ainda dentro do comportamento alimentar, a obesidade é um comportamento frequente e induzido, entre outros fatores, por nossa tendência a preferir alimentos calóricos, principalmente aqueles ricos em gordura e açúcares, novamente uma predisposição moldada em ambientes nos quais esses tipos de alimentos eram escassos. É claro que hoje, com supermercados à disposição isto não é mais verdade, e a facilidade em conseguir esse tipo de alimentos resulta em obesidade e em doenças que Nesse e Williams chama de doenças da civilização. Estamos retomando esta linha atualmente com o objetivo de investigar o craving, e seus fatores desencadeantes.
Como o altruísmo faz sentido a partir da ótica evolucionista? Não seria evolutivamente mais vantajoso agir apenas em nosso favor?
Esta foi uma questão que preocupou tanto ao Darwin, que ele chegou a acreditar que ela seria o fim de sua teoria. Ela começou a ser resolvida por Hamilton, que propôs a seleção de parentesco, que diz que ajudamos nossos parentes porque isto equivale, dependendo de quantos parentes são ajudados e de nosso grau de parentesco com eles, a ajudar a nós mesmos. Isto acontece porque, do ponto de vista evolutivo, quando falamos em altruísmo estamos nos referindo a capacidade de passar nossos genes para a próxima geração. Portanto, podemos ser altruístas do ponto de vista moral (ou próximo) e ao mesmo tempo egoístas do ponto de vista evolutivo (ou distal). É o que acontece quando ajudamos nossos parentes.
Mais tarde, Trivers apresenta a hipótese do altruísmo recíproco, que explica o comportamento altruísta dirigido a não parentes. Segundo esta teoria, em espécies com longo tempo de vida e boa capacidade de memória, como é o caso dos humanos, haveria a possibilidade de prestar favores a indivíduos não aparentados na expectativa de uma retribuição futura. A capacidade de memória nos permitiria lembrar e reencontrar nossos devedores, e o longo tempo de vida, oportunidades de cobrar nossas dívidas. Dessa maneira, como na seleção de parentesco, ao ajudar outros estaríamos ajudando a nós mesmos.
Porém, nem só da retribuição direta vive o homem. Na realidade, vivemos em grande parte de nossa reputação, ou do altruísmo indireto, que nada mais é do que praticar uma boa ação na frente de uma audiência interessada. Vários estudos têm demonstrado (dentre os quais os excelentes trabalhos de Milinski) que ao exibir nossa boa vontade e disposição para cooperar, atraímos a boa vontade e a cooperação de outros, que reagem a nossa boa reputação.
É importante destacar que a maior parte dessas ações não são planejadas de forma maquiavélica ou calculista. Embora alguns indivíduos possam se aproveitar de nossa tendência a cooperar com parentes, a retornar favores e boas ações ou a cooperar com aqueles que temos em alta conta, na maior parte das vezes agimos assim porque consideramos que essa é a maneira correta de agir. Ou seja, seguimos predisposições que foram selecionadas durante nosso passado evolutivo e reforçadas pelas regras da vida social, razão pela qual somos o que Wright chama de animais morais. Ao agir dessa forma, ao nos comportarmos altruisticamente, favorecemos outras pessoas, somos éticos, mas também aumentamos as chances de sermos, nós mesmos, os receptores do altruísmo de outros. Portanto, nosso altruísmo é em grande parte egoísta, do ponto de vista biológico.
Alguns autores argumentam que a religião, e que, em especial, os rituais religiosos, surgiram, entre outros motivos, como uma solução para o problema social da não cooperatividade (e.g. trapaceiros), como os proponentes da teoria da sinalização dispendiosa (costly signaling theory). Nesse sentido, qual é a relação entre a religião e a cooperação?
Há dois argumentos, na abordagem evolucionista, para o aparecimento da religião na espécie humana: a hipótese adaptacionista, descrita em sua pergunta, e a hipótese do spandrel, que sugere que a religião é um subproduto da mente evoluída.
A primeira hipótese faz todo sentido, pois uma das questões mais complicadas da vida social, até hoje, é evitar que outros se aproveitem de sistemas sociais que deveriam beneficiar apenas seus membros. Uma boa parte das normas sociais, até os dias atuais é dedicada a estabelecer obrigações e prever punições aos que não as cumprem. Nossos ancestrais provavelmente tiveram que lidar com esses mesmos problemas e a religião pode ter cumprido uma função adaptacionista ao estabelecer rituais de entrada e de manutenção tão custosos, que só valeria a pena cumpri-los caso houvesse um real comprometimento. Trapaceiros evitariam passar por experiências dolorosas ou de privação incluídas nesses rituais, e isto permitiria selecionar aqueles que realmente estariam identificados com o grupo.
A segunda hipótese sugere que a religião é um subproduto do crescimento exacerbado do cérebro humano, que deu margem ao desenvolvimento de mecanismos que favoreceriam o desenvolvimento de explicações sobrenaturais. Mais especificamente, Pascal Boyer, em seu livro Religion Explained, sugere o desenvolvimento de mecanismos tais como: o de detecção de agentes, que levaria a imaginar agentes por trás de eventos difíceis de ser explicados, como relâmpagos e trovões, e à proposição de suas causas a agentes sobrenaturais; à melhor memória para eventos minimamente contra intuitivos, o que estaria de acordo com deuses antropomórficos à semelhança dos humanos, porém mais poderosos; e mecanismos de prevenção de perigo, que poderiam ter levado ao desenvolvimento de rituais religiosos como forma de prevenir males futuros.
Evidências têm sido obtidas para as duas hipóteses, porém não foi possível, até o momento, descartar nenhuma delas. Fala a favor da hipótese adaptacionista o fato de que grupos religiosos, especialmente aqueles que são mais estritos e/ou minoritários, demonstrarem alto grau de cooperação entre seus membros. Porém, outros grupos, não religiosos, também mostram disposição para cooperar, até mesmo grupos não estruturados, como o de ateus.
Portanto, existe claramente uma relação entre religião e cooperação, porém essa relação não é universal. Há grupos religiosos mais “frouxos”, nos quais a pertinência ao grupo não age necessariamente como referência para seus seguidores, e, por outro lado, há grupos não religiosos que mostram essa disposição, como grupos políticos (a história recente da União Soviética seria um exemplo interessante de analisar).
Prefiro pensar que a religião e cooperação estão relacionadas, da mesma maneira como a cooperação pode ser favorecida em outros grupos, não religiosos. Isto fala muito mais a favor de, como espécie, mostrarmos uma tendência a fazer parte de grupos do que a sermos religiosos.
Você tem investigado recentemente alguns aspectos relacionados à moralidade, à formação de grupos e à cooperação em crianças. Você poderia comentar um pouco sobre essa sua pesquisa e sobre como estes fenômenos sociais interagem?
Desde que a Psicologia começou a se interessar pelo comportamento moral a questão de quando ele aparece, durante o desenvolvimento, esteve presente. Somos naturalmente morais ou aprendemos a nos comportar moralmente? Na realidade, estudos recentes sugerem que as duas coisas acontecem. Os trabalhos de Paul Bloom, Karen Wynn e sua equipe na universidade de Yale, mostram que existe um senso moral desde muito cedo. Dois pontos a destacar aqui: primeiro, isto é muito diferente do que a Psicologia tradicional tem afirmado sobre o desenvolvimento da moralidade, sugerindo que nascemos animais amorais (ver, por exemplo, Piaget e Kohlberg); em segundo lugar, estas descobertas poderiam sugerir que a socialização não é importante no desenvolvimento da moralidade. Na realidade, como eu havia mencionado antes, os dois aspectos se complementam.
Todos, independente do tipo de criação que recebemos ou da cultura na qual vivemos, temos, desde muito cedo, algum senso do certo e do errado, do justo ou do injusto. No entanto, a cultura e a criação constroem sobre e modelam esta nossa predisposição. A moralidade, tal como a conhecemos e que a maioria de nós exerce, é uma síntese de predisposições biológicas e da socialização. Ela está solidamente fundada em um aparato básico que faz com que os bebês, nos estudos citados acima, prefiram os bichinhos e objetos que ajudam e são gentis em relação aos que atrapalham ou são maus. Mas a moralidade é mais do que isso – ela também é o produto da nossa cultura e de normas que são comunitariamente acordadas.
Nesse sentido, o que entendemos por comportamento moral ou altruísta na perspectiva evolucionista, pode ser bastante diverso daquilo que se chama comportamento moral em outras áreas ou disciplinas. Estamos interessados nos impactos desses comportamentos sobre a aptidão individual, e por essa razão, comportamentos que são genuinamente morais ou altruístas do ponto de vista ético podem não o ser do ponto de vista evolutivo. Crianças e outros indivíduos indefesos ou desprotegidos são frequentemente o alvo de comportamentos de ajuda e solidariedade. Crianças, principalmente aquelas que parecem mais desprotegidas, fracas ou aquelas que têm características infantis mais pronunciadas, frequentemente induzem comportamentos de ajuda e proteção. Porém, isto acontece principalmente quando o protetor é um adulto. Resultados iniciais de um estudo que estamos desenvolvendo sugerem que crianças mais velhas não se mostram tão complacentes em relação a crianças mais jovens. Portanto, este é um padrão de comportamento que se desenvolve ao longo da vida e sofre o efeito da socialização, como enfatizei acima.
Investigamos também se crianças de 6 a 11 anos cooperavam com seu grupo, abrindo mão de uma recompensa imediata em favor de uma recompensa maior mais tarde. Descobrimos que elas tem maiores chances de fazer isto quando algumas circunstâncias estão presentes, como um grupo pequeno e mais vigilante, umfeedback relativo ao comportamento do grupo, entre outras. Tal como adultos, crianças avaliam as condições presentes, e decidem qual a melhor estratégia.
Finalmente, investigamos também o efeito do grupo de pertinência sobre a generosidade. Vimos que grupos religiosos ou ateus tendem a ser mais generosos com seu pares, e igualmente generosos (ou pouco generosos) com outros indivíduos. A ideia de fazer o bem sem olhar a quem, tão cara a algumas religiões, não parece se manter – fazer o bem sim, porém com uma seleção muito cuidadosa de quem recebe o benefício. Este é um comportamento de favorecimento do grupo, bastante estudado em psicologia social. Acrescentamos uma explicação mais ampla, baseada no modo de vida ancestral, quando nossos ancestrais dependiam de seu grupo para sobrevivência e temiam estranhos. Considero que esta abordagem complementa as explicações dadas pela psicologia social, inserindo na equação as predisposições biológicas, que irão modular a expressão do comportamento.
Como surgiu o seu interesse pela sua área de pesquisa?
Fiz minha formação pós-graduada na área de comportamento animal. Meu interesse pelo estudo do comportamento animal foi despertado ainda na graduação. Trabalhei muitos anos com saguis, peixes e golfinhos. Na realidade, as perguntas que fazemos em relação aos humanos, na abordagem evolucionista, são as mesmas que fazemos para as outras espécies. Claro que há, eu não diria complicadores, mas especificidades. Folley diz que somos apenas mais uma espécie única, e eu não poderia concordar mais. Pelo fato de ser psicóloga e orientar vários psicólogos, a ampliação de minha área de trabalho incluindo humanos foi uma coisa natural. Continuo até hoje interessada em estudar saguis, que são animais extremamente interessantes, e faço também alguns trabalhos com peixes.
É difícil ser um pesquisador em psicologia no Brasil?
Esta resposta é necessariamente comparativa. Eu vivi os anos difíceis da pesquisa no Brasil, quando os recursos eram poucos e o trabalho, principalmente na área de humanas e sociais, pouco valorizado. Hoje temos recursos, temos laboratórios temos reconhecimento e, principalmente, temos uma mudança de mentalidade no que diz respeito a pesquisa. Ela deixou de ser considerada, pelos nossos dirigentes, como um artigo supérfluo e de luxo, principalmente nas ciências humanas e sociais. É claro que há dificuldades inerentes ao trabalho do pesquisador, mas essas dificuldades todos nós enfrentamos.
Existem mudanças que facilitariam o seu trabalho?
Claro! Fazer pesquisa em uma universidade pública tem muitas vantagens, mas lidamos com a lentidão paquidérmica da burocracia estatal. Costumo dizer que às vezes é mais difícil gastar os recursos do que consegui-los. Outro entrave são os comitês de ética, formados for pessoas bem intencionadas mas mal informadas, que equiparam estudos altamente invasivos e potencialmente danosos com estudos que utilizam um questionário. Além disso, algumas vezes acreditam que devem dizer ao pesquisador que metodologia utilizar sem sequer conhecer a área de trabalho em exame. Isto tem atrasado e prejudicado imensamente o trabalho do pesquisador em ciências humanas.
Qual foi o melhor conselho que você já recebeu?
Mais do que conselhos, o que me ajudou foram exemplos de conduta. De meu orientador, que nunca teve medo de arriscar e sair de sua zona de conforto, para tocar uma investigação inovadora e de resultados altamente incertos. De meus colegas, que nos tempos mais difíceis persistiram fazendo pesquisa e tentando publicar, contra todos os empecilhos.
Você recomenda alguma leitura para quem se interessa pela sua área?
Eu recomendaria o livro que editei junto com a professora Emma Otta, da USP,Psicologia Evolucionista. Porém (e coloque isto na conta das dificuldades), com a edição completamente esgotada, a editora nos avisou que não irá reimprimir o livro por não haver um retorno comercial adequado. Felizmente, há vários outros livros, a maioria traduzidos, interessantes e valem a pena ser lidos, como os de Frank de Waal, Matt Ridley e outros. Claro que se o interesse é mais acadêmico, há necessidade de recorrer aos papers, que são mais atualizados e rigorosos. Publicamos em 2010 um dossiê na revista Estudos de Psicologia que também pode servir de referência a quem quer um primeiro contato com a área.
Esta série de entrevistas é uma parceria entre os blogs SocialMente e Cogpsi. Visite-nos para conhecer um pouco mais sobre psicologia!

O professor Gerson A. Janczura estuda a memória humana no Laboratório de Processos Cognitivos da Universidade de Brasília (UnB). Sendo um dos pioneiros da área, Gerson teve um papel importante na introdução e expansão da psicologia cognitiva no Brasil. Nesta entrevista que ele gentilmente nos cedeu, o professor explorou um pouco do conhecimento que possuímos hoje acerca de como a memória humana funciona, de como somos capazes de formar memórias falsas, das intervenções práticas que a psicologia cognitiva pode subsidiar e das dificuldades que a psicologia cognitiva enfrenta para ganhar espaço no Brasil.


Gerson, você poderia nos falar brevemente sobre os projetos de pesquisa que você tem conduzido no seu grupo de pesquisa? 
A maioria dos projetos desenvolvidos no Laboratório de Processos Cognitivos/UnB estão associados à investigação da Memória Humana. Duas questões centrais de interesse orientam os projetos: a primeira se relaciona à representação mental do conhecimento na memória e, a segunda, sobre a interação entre a Memória e outros Processos Cognitivos. Seguem alguns projetos em andamento:

1)      Normas de Associação Semântica: este projeto está mapeando as redes associativas de material verbal (palavras) que incluem medidas de força associativa, tamanho do conjunto, conectividade e ressonância. A produção deste material permitirá investigar as influências de mecanismos implícitas (e.g., priming) em medidas de memória diretas e indiretas, assim como a sua influência em outros processos cognitivos como o Raciocínio Lógico e a Categorização.

2)      Categorização e Memória: investiga o efeito de mecanismos da memória no desempenho de tarefas que envolvem conceitos e categorias, classicamente conhecidas como “aprendizagem de conceitos”. As questões de interesse se relacionam à aquisição e representação mental de conceitos naturais e artificiais, o efeito da tipicidade em tarefas de classificação, o efeito da força do traço e outras dimensões representacionais em problemas que envolvem o raciocínio dedutivo.

3)      Dicionário de Verbetes da Memória: este projeto está sendo desenvolvido junto ao GT da ANPEPP “Memória: Modelos, pesquisa básica e aplicações” que congrega 9 pesquisadores vinculados a sete universidades no Brasil e Portugal. O livro apresentará mais de 300 verbetes sobre a teoria e pesquisa sobre a Memória, assim como termos da Ciência Cognitiva.

4)      Projetos desenvolvidos junto aos alunos do Mestrado ou Doutorado:
a.       Treino da Memória para Idosos: Este projeto visa desenvolver um programa de intervenção e avaliação da memória para idosos focalizando a reabilitação das funções mnemônicas e a aquisição de estratégias de enfrentamento do comprometimento observado nesta etapa do desenvolvimento humano.

b.      Processo de facilitação e inibição na memória implícita de idosos: O projeto investiga o desempenho da memória na terceira idade verbal focalizando o papel das etapas de processamento implícito no acesso à informação em tarefas que solicitam a recuperação direta do material auxiliada por pistas.

c.       O desempenho de enxadristas em função da especialização e fases do jogo: Este projeto se insere no campo da Resolução de Problemas e Expertise pretendendo colaborar na compreensão das diferenças entre novatos e especialistas, assim como no curso do desenvolvimento da especialização.
d.      Programa de Reabilitação de Indivíduos com Lesão do Plexo: O objetivo deste projeto é desenvolver um programa de intervenção, baseado em técnicas imagísticas e atividades fisioterápicas, para indivíduos que sofreram a lesão do plexo e, em conseqüência, têm os movimentos do braço respectivo comprometido.

E quais são os projetos de pesquisa para o futuro?
Geralmente, os projetos desenvolvidos pelos pesquisadores estão inseridos em Programas de Pesquisa. No Laboratório de Processos Cognitivos da UnB desenvolvemos estudos em dois grandes programas de pesquisa: um programa direcionado ao desenvolvimento de intervenções relacionadas a diferentes tipos de dificuldades cognitivas (por exemplo, problemas relacionados à memória), e outro programa voltado para a pesquisa básica (por exemplo, desenvolvimento da expertise, investigação de dificuldades de leitura, fatores que influenciam o desempenho da memória). Estes programas de pesquisa interagem, isto é, promovemos uma troca entre as pesquisas básica e aplicada.

Como surgiu o seu interesse pela sua área de pesquisa?
Meu interesse na pesquisa psicológica iniciou na época da graduação. Na ocasião, atuava como monitor do Laboratório de Aprendizagem Animal na PUCRS. Este interesse foi se consolidando quando passei a coordenar o Laboratório de Percepção e Psicofísica na mesma IES, e desenvolvi minha primeira pesquisa no campo da Percepção e Psicofísica investigando a Ilusão de Myller-Lyer. Na mesma época, fui convidado para colaborar na montagem do Laboratório de Aprendizagem Animal da UCS/RS. Naquele período não tinha, ainda, entrado em contato com a Psicologia Cognitiva Experimental. O primeiro contato com a área ocorreu quando fiz o mestrado na UnB, na década de 1980. No início do mestrado esperava desenvolver a pesquisa de conclusão seguindo a abordagem da Análise Experimental do Comportamento. Entretanto, experienciava muitas dúvidas e insatisfações teóricas, metodológicas e empíricas com esta perspectiva. Minhas críticas eram semelhantes àquelas relatadas na história da Psicologia Cognitiva nas décadas de 1950 e 1960. Durante o mestrado tive a oportunidade de conhecer a abordagem do processamento da informação e desenvolver minha pesquisa no campo da representação mental do conhecimento.

Alguns dos seus projetos indicam que o conhecimento produzido pela psicologia cognitiva tem permitido o desenvolvimento de intervenções efetivas em indivíduos com prejuízos na memória (e.g. idosos). Conte-nos um pouco sobre este tipo de aplicação da psicologia cognitiva e como tem sido a sua experiência com estas aplicações.
Desenvolvemos um programa de intervenção e avaliação da memória para idosos institucionalizados. Nossa motivação era promover qualidade de vida de um grupo que tem recebido pouca atenção. Os procedimentos, desenvolvidos em sessões com 60 minutos, duas vezes por semana durante quase quatro semanas, evidenciaram que a intervenção melhorou o desempenho em testes de memória. Além disso, foi verificado que os idosos também obtiveram uma avaliação melhor em testes de avaliação neuropsicológica após o treinamento. Os procedimentos implementados no treino de memória foram delineados a partir do conhecimento científicos acerca dos processos da memória e dos fatores que podem favorecer ou dificultar o seu desempenho. Esta proposta será, agora, estendida e ampliada para idosos sem comprometimento cognitivo severo. O termo “envelhecimento cognitivo normal” está associado às características cognitivas observadas na terceira idade que não são atribuídas a condições patológicas como, por exemplo, a Doença de Alzheimer.
Outra derivação tecnológica que estamos desenvolvendo se apóia em estudos experimentais e clínicos sobre a influência da imagística no indivíduo. Pesquisas e a prática clínica têm evidenciado que o uso de imagens mentais pode afetar o comportamento humano e o próprio funcionamento cerebral. Este fato pode ser útil no programa de intervenção que estamos desenvolvendo, baseado em técnicas imagísticas e atividades fisioterápicas, para indivíduos que sofreram a lesão do plexo e, em conseqüência, têm os movimentos do braço(s) respectivo comprometido. A origem desta lesão é, usualmente, acidentes com motocicletas sendo que a maioria dos pacientes com esta condição é homem. Este projeto se encontra em avaliação pelo Comitê de Ética, e será brevemente iniciado. Ou seja, pacientes com esta condição serão submetidos a um programa de exercícios mentais associados a fisioterapia durante um conjunto de sessões. Nossa expectativa é que estes pacientes alcançarão maior recuperação dos movimentos comparados aos pacientes que somente receberão a fisioterapia.

Como você avalia as implicações do avanço das neurociências no estudo de aspectos cognitivos e comportamentais?
As neurociências têm impactado muito positivamente as hipóteses cognitivas sobre o comportamento humano. As evidências produzidas, por exemplos, pelas técnicas de neuroimagem têm confirmado muitas afirmações sobre o funcionamento da mente e evidenciado a necessidade de compreendermos e investigarmos os fenômenos psicológicos em, pelo menos, dois níveis: o nível neurológico e o nível cognitivo. Estes níveis interagem impondo limites mutuamente, tanto no comportamento quando nos modelos teóricos propostos pelos pesquisadores.

Considerando o panorama atual na psicologia cognitiva, o que nós sabemos hoje sobre o que é a memória e como ela funciona?
Trata-se de uma pergunta ambiciosa. A investigação científica da memória começou há mais de 100 anos e tem produzido uma vasta literatura científica que se dedica a relatar nosso conhecimento sobre a memória do ponto de vista cognitivo. Tentarei apontar alguns aspectos que considero relevantes. A memória é uma propriedade do cérebro que permite ao indivíduo manter sua história de aprendizagem ao longo do tempo. Sabemos que vários fatores influenciam a aquisição, retenção e recuperação destes conteúdos. Isto significa que o desempenho da memória pode ser beneficiado ou comprometido por diferentes processos, ou momentos, que designamos de codificação, armazenamento e recuperação. Estes fatores incluem as características da informação a serem memorizadas, as diferenças individuais, a natureza do teste de memória, as estratégias administradas pelo indivíduo no momento da memorização e da recuperação, como a informação é apresentada para memorização, o tempo decorrido entre a experiência e sua lembrança, entre outros fatores. Mas, é importante destacar que, além de suas contribuições individuais, as variáveis que afetam as diferentes etapas podem interagir influenciando a probabilidade de lembrarmos-nos de experiências e conhecimentos.
Um fator que mudou nossa compreensão sobre o funcionamento da memória foi relatado em vários estudos experimentais na década de 1970 com amnésicos e indivíduos sem danos aparentes de memória. Estes estudos mostraram que a chance de um amnésico lembrar informações também era influenciada pela maneira como aqueles pacientes eram testados. Demonstrou-se que os pacientes registravam experiências anteriores mesmo que não tivessem consciência destas no momento em que a memória era avaliada e, apesar disto, aquelas informações estavam influenciando seu comportamento atual. Estes resultados são semelhantes em indivíduos com memória intacta, ou seja, formamos nossas memórias com e sem a participação da consciência e evocamos informações com e sem intenção consciente. Atualmente, nossa compreensão sobre a memória contempla mecanismos conscientes (denominados de processos estratégicos) e inconscientes (denominados de processos automáticos). Neste sentido, a memória também se refere às influências dos conteúdos conscientes e inconscientes e dos mecanismos estratégicos e automáticos sobre o comportamento humano.
Sabemos que este funcionamento está sujeito a falhas incluindo esquecimentos temporários, esquecimentos parciais, e falsas lembranças (ou, falsas memórias). Estes fatos têm sido discutidos em função do caráter construtivo ou reconstrutivo da memória e têm influenciado nossa compreensão sobre diversos fenômenos cotidianos como a testemunha ocular e o depoimento assistido de crianças.
Além dos avanços na compreensão dos processos da memória, a pesquisa tem contribuído na concepção da memória como um sistema. Evoluímos do modelo clássico de um armazenador breve de experiências imediatas (i.e., Memória de Curto-Prazo) para um modelo mais satisfatório (i.e., Memória de Trabalho) que atende às demandas e complexidade das tarefas momentâneas. Vários modelos teórico-experimentais (e.g., MATRIX, PIER2, Modelos Conexionistas, TODAM, ACT*, CONJOINT RECOGNITION, MINERVA, CHARM) estão sendo testados e aprimorados para respondermos às questões fundamentais sobre como o conhecimento é armazenado, como é representado e retido durante longos períodos de tempo (i.e., Memória de Longo-Prazo).
Os comentários acima mencionaram, muito brevemente, apenas detalhes sobre nosso conhecimento atual sobre a memória humana. Vários campos de estudos que não citei incluem avanços nos temas: metamemória, memória sensorial, memória não-declarativa, memória episódica, memória autobiográfica, memória para o espaço e tempo, memória semântica, memória visual, desenvolvimento da memória, distúrbios da memória, memória na terceira idade, memória prospectiva, métodos de investigação da memória, e neurociência da memória.

O testemunho de pessoas que presenciaram determinados episódios (como um assassinato) pode ter um peso considerável no julgamento de um caso. Entretanto, muitas pesquisas na psicologia cognitiva indicam que modificamos frequentemente nossas memórias episódicas quando as recuperamos. Podemos confiar na nossa capacidade de recuperar estes episódios passados?
A observação de que o indivíduo pode gerar falsas memórias não implica que toda recordação seja falha, ou que devemos desconfiar de todas as nossas lembranças. As falsas memórias podem se relacionar a episódios específicos e traumatizantes, como um assassinato, mas também podem refletir experiências comuns do cotidiano. Entretanto, a maioria de nossas recordações é acurada. É importante lembrar que a memória não atua independentemente de outros processos mentais como, por exemplo, o raciocínio, a atenção. Isto significa que uma recordação pode sofrer o “filtro” de outras atividades mentais levando o indivíduo a concluir que determinada memória é falsa, verdadeira ou duvidosa. Além disso, não podemos excluir a contribuição de outros componentes da experiência humana como, por exemplo, a emoção e sua relação com a cognição.

É difícil ser um pesquisador em psicologia no Brasil?
Sim, é difícil. A pesquisa de ponta sobre a cognição humana é cara. Considere, por exemplo, que cada vez mais a pesquisa têm se apoiado em variáveis biológicas. Tanto as variáveis cognitivas quanto as biológicas demandam especialização metodológica de alto custo operacional. Como coletar dados de imagem cerebral sem a aparelhagem apropriada (RMF, fMRI, etc)? Outra dificuldade se relacionada à escassez de especialistas na área no país e ao ensino desta abordagem. Quantos cursos de graduação incluem Psicologia Cognitiva nos cursos de graduação? Quantos cursos de pós-graduação têm linhas de pesquisa e programas de pesquisa nesta abordagem? Apesar de esta perspectiva teórico-metodológica estar consolidada em outros países há muitas décadas, no Brasil somente mais recentemente a área cognitiva tem logrado participação e reconhecimento na comunidade científica e nos meios acadêmicos.

Qual foi o melhor conselho que você já recebeu?
 Um dos conselhos mais úteis que recebi durante meu doutoramento foi sempre “fazer o melhor possível em minhas tarefas”. Este conselho foi dado pelo meu orientador, Dr. Douglas L. Nelson da University of South Florida/USA, lá nos anos 1990.

Você recomenda alguma leitura para quem se interessa pela sua área?
Vários livros sobre a área já estão disponíveis no Brasil. Se a pessoa não tem familiaridade com a área sugiro que leia um manual ou livro texto. Um panorama amplo da área é oferecido por:

- Sternberg, R.J. (2010). Psicologia Cognitiva (Tradução da 5a.ed.). São Paulo: CENGAGE.
- John R. Anderson (2004), Psicologia Cognitiva e suas Implicações Experimentais, 5a. Edição, Editora LTC.
- Matlin, M. (2004). Psicologia Cognitiva. 5. ed. São Paulo: LTC.
Se a pessoa tem interesse em Terapia Cognitiva, sugiro que inicie com a leitura de:
- Beck, J. S. (1997). Terapia Cognitiva: Teoria e Prática. Porto Alegre: ARTMED.

Esta série de entrevistas é uma parceria entre os blogs SocialMente e Cogpsi. Visite-nos para conhecer um pouco mais sobre psicologia


Mônica C. Miranda é pesquisadora pela Associação Fundo de Incentivo à Pesquisa (AFIP), formada em Psicologia pela Universidade São Marcos e possui Mestrado e Doutorado em Psicobiologia pela Universidade Federal de São Paulo. É orientadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde e Pesquisadora do Depto de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo. Coordena o Núcleo de Atendimento Neuropsicológico Infantil Interdisciplinar (NANI) do Centro Paulista de Neuropsicologia. Mônica é também uma das autoras do livro Neuropsicologia do Desenvolvimento: conceitos e abordagens, publicado em 2006. Além disso, ela também é uma das organizadoras do livro Neuropsicologia do Desenvolvimento: Transtornos do neurodesenvolvimento, que será publicado em outubro de 2012 pela Editora Rubio. Nesta entrevista, a Mônica ofereceu a sua perspectiva, enquanto uma profissional da área, sobre as recentes polêmicas envolvendo o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), além de comentar sobre os seus projetos de pesquisa. Façam bom proveito!
Mônica, você pode nos contar um pouco sobre os projetos de pesquisa que você está desenvolvendo em seu grupo de pesquisa atualmente e sobre os projetos que estão a caminho?
As pesquisas que eu estou envolvida atualmente dizem respeito a duas linhas principais: a primeira se refere a desenvolvimento/normatização de instrumentos de avaliação neuropsicológica na infância, levando em consideração as características socioeconômicas e culturais na infância; a segunda linha é de diagnóstico, intervenção e prevenção nos distúrbios do neurodesenvolvimento.
Como surgiu o seu interesse pela sua área de pesquisa?
A Universidade São Marcos, na qual fiz o curso de Psicologia, oferecia um curso com base na Psicanálise que me fascinou a princípio e me fez pensar em buscar a especialização nessa área, e a área clínica me parecia o caminho mais “lógico”; iniciei, a partir do 5º ano, os estágios clínicos, obrigatórios e opcionais, mas um dos estágios opcionais, atendimento psicoterápico a crianças com obesidade, mostrou-me outros caminhos. As crianças eram encaminhadas pela Disciplina de Nutrologia da UNIFESP, onde tinham acompanhamentos com médicos, nutricionistas, entre outros, e nossa atuação era a intervenção psicológica. Nesses atendimentos descobri o quanto era fascinante, e ao mesmo tempo inquietante, lidar com esses quadros. Inquietante porque percebia haver não só fatores psíquicos que determinavam esse quadro, mas também outros fatores os quais eu ainda não conseguia denominar na época, pelo pouco conhecimento. Essa inquietude me fez buscar a especialização na área da saúde, especificamente na UNIFESP devido à parceria com a Universidade São Marcos, no trabalho com as crianças com obesidade. Ao receber uma indicação de uma vaga de estágio no Departamento de Psicobiologia, iniciei o contato com a pesquisa científica, bem como com a neuropsicologia, ambas desconhecidas para mim. A neuropsicologia se tornou minha paixão exatamente por estudar as interações entre os fatores neurobiológicos e psicológicos.
Em relação à sua primeira linha de pesquisa, como se dá essa relação entre avaliação neuropsicológica e características sócio-econômicas? As características sócio-econômicas podem influenciar o desenvolvimento neurocognitivo (e até que ponto se dá essa influência)?
A avaliação neuropsicológica na infância é fundamental na definição de vários diagnóstico, e assim as diversas técnicas (testes, instrumentos) de avaliação precisam ter dados padronizados levando em consideração se há ou não a influencia de fatores socioeconômicos e culturais. O que isso quer dizer? que esse é um fenômeno complexo, não basta utilizarmos testes que tenham padrão de desempenho internacionais se não soubermos até que ponto esse desempenho sofre a influencia dessas variáveis. Por exemplo, vimos que em algumas culturas determinadas habilidade (verbais, por ex.) podem ser mais estimuladas, e ainda que em ambientes menos favorecidos economicamente essas mesmas habilidades verbais, como no caso da aquisição de vocabulário, podem se desenvolver de forma diferente. Veja que utilizo o termo 'diferente' e não 'pior' ou 'melhor', pois seria muita imprudência qualquer afirmação disso, na medida em que, como eu disse antes, o fenômeno ambiental é algo complexo e não totalmente entendido, ou seja, o que nesse ambiente em que a criança cresce e se desenvolve poder ser prejudicial e no que? Outro exemplo, a desnutrição é prejudicial ao desenvolvimento cognitivo, mas quando aliado a extensão desse quadro mais condições de extrema pobreza que potencializam o risco de continuidade da desnutrição. O papel das pesquisas é exatamente esse, determinar o que e como.
Tem-se debatido regularmente na mídia sobre o TDAH, sendo que alguns grupos de profissionais questionam a existência deste distúrbio e de outros, os chamando de ‘supostos transtornos’. Qual é a sua posição sobre este tema?
Essa argumentação não se sustenta a luz da comunidade científica. Essa discussão surgiu acerca de 2 anos no Brasil por um grupo de profissionais apoiados pelo Conselho Federal de Psicologia, mas sem nenhuma base cientifica, ou seja, essa discussão se apoia em concepções teóricas e ideais que já foram contestadas pela comunidade cientifica brasileira por não terem nenhuma base cientifica.
Por exemplo, uma carta emitida e publicada pela Associação Brasileira do Déficit de Atenção (www.tdah.org.br), escrita pelo Dr. Paulo Mattos e Dr. Luiz A. Rohde, respeitados pesquisadores brasileiros em TDAH, bem como pela Associação Brasileira de Psiquiatria (www.abp.org.br), traz argumento importantes acerca dessas opiniões. Segue um trecho dessa carta: “Quando você ouve alguém falar que TDAH é uma doença inventada, por mais eloquente que seja o autor desta opinião sem qualquer base científica, ou mesmo a sua titulação (a incapacidade e leviandade sempre foram democráticas: também acometem médicos, psicólogos, etc.), pesquise sobre a veracidade (e a origem) do que está sendo dito (…).
O reconhecimento que se trata de um transtorno neurobiológico que causa prejuízo significativo é inequívoco, com estimativa de prevalência, no mundo inteiro, em cerca de 5,2% de crianças afetadas e que persiste na idade adulta.  Há sim estudos como o do Prof. Dr. Marcos Arruda, cujo resumo foi apresentado no 3rd International Congress on ADHD, Berlim/Alemanha, e os resultados mostram que muitos diagnósticos são realizados por profissionais que não conhecem os critérios internacionais. Há necessidade de critérios diagnósticos baseados em instrumentos gold-standard, mas o mesmo estudo ainda aponta que “aproximadamente 1,7 milhões de adolescentes e crianças brasileiras com TDAH nuca foram diagnosticados e 2,5 milhões nunca foram tratados”.
Umas das alegações desse grupo de profissionais é que os critérios diagnósticos baseados nas escalas de comportamento como a SNAP não é critério de doença, “Se você preencher seis das perguntas tem o diagnóstico de déficit de atenção, hiperatividade ou dos dois” (afirmativa desse grupo de profissionais). Porém, a delimitação diagnóstica não se limita apenas aos critérios descritos em escalas de comportamento, mas a uma ampla variedade de comportamentos que são verificados em diferentes contextos que permitirão uma observação mais flexível e dinâmica da criança com TDAH, bem como na avaliação interdisciplinar que poderá afastar outras causas, como as ambientais.
Para finalizar, é um absurdo esse grupo promover esses fóruns sem dar espaço aos pesquisadores da área, pois para mim esses fóruns com uma visão unilateral são uma irresponsabilidade, pois pode negar o direito a essas crianças de tratamento adequado. Essa semana o Instituto ABCD divulgou que a Câmara analisa o Projeto de Lei 3394/12, do deputado Manoel Junior (PMDB-PB), que obriga os estados e municípios a manter programa nas instituições de educação básica para diagnóstico e tratamento de estudantes com dislexia. Outra conquista foi o Edital do ENEM de 24 de Maio desse ano que haverá atendimento DIFERENCIADO aos portadores de dislexia, déficit de atenção, autismo, etc. Sem as pesquisas que mostram as dificuldades dessas crianças essa conquista não teria acontecido e é irresponsabilidade não dar o direito a estes indivíduos de que há um distúrbio e que a culpa não é deles.
Ainda sobre esta polêmica, estes mesmos profissionais têm alegado haver uma prescrição indiscriminada de medicamentos relacionados ao TDAH. Este é um problema real?
Primeiro é importante ressaltar que quando o diagnóstico de TDAH é estabelecido, o uso de medicações é uma estratégia muito útil e necessária para atingir os objetivos dos pacientes. A utilização de medicações não é a regra para todos os casos, particularmente aqueles com sintomas leves e sem repercussões importantes na vida social e acadêmica, mas isso tem que ser analisado caso a caso. Mesmo assim, pode ser necessário medicar esses casos leves e monitorar os efeitos e eficácia.
Sim, houve um aumento de prescrições de metilfenidato (principal medicamento utilizado para tratamento do TDAH), mas isso não significa que está tendo prescrição indiscriminada, e se isso ocorre é devido a um importante fator: em minha opinião há profissionais mal preparados e que saem fazendo “diagnóstico” equivocado de TDAH. Já vi apresentações em congressos (pôsteres, apresentações orais) de profissionais da saúde que são verdadeiros absurdos, pois isoladamente faziam tal “diagnóstico” e ai obviamente pode haver prescrição inadequada de medicamentos.
 Outro fator, que destacamos em nosso livro (ver referência ao final), é que o TDAH é um transtorno crônico do desenvolvimento, melhor tratado vagarosa e sistematicamente. Isso vai de encontro ao senso de urgência do paciente ao descobrir que tem TDAH – ele busca uma cura rápida, e pode tentar apressar o processo com suas próprias mãos, aumentando as doses muito rapidamente, que pode levar a um curso mais longo de tentativas de tratamento, muitas vezes com diversos medicamentos diferentes e sem a eficácia possível. Por outro lado, muitos médicos relutam em prescrever doses adequadas de medicamentos, o que pode impedir a identificação de uma dose ótima.
Em uma entrevista à Revista Época (edição 2229) o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria afirmou algo muito importante “Podemos discutir se estamos medicando demais, mas dizer que o TDAH não existe ou que a medicação é desnecessária não é o caminho para que isso aconteça”, considera. “E não é comum as pessoas terem TDAH. Se olharmos as estatísticas, 95% das crianças não têm a doença, e não o contrário”.
Os debates devem, sim, acontecer em torno dessa questão, alertando a população que simplesmente não utilizar medicamento em casos de TDAH, principalmente quando há comorbidades psiquiátricas, é um risco à vida desses pacientes. Tivemos vários casos atendidos em nosso núcleo (Núcleo de Atendimento Neuropsicológico Infantil) em que as mães se recusavam a medicar seus filhos e vimos essas crianças em situação de risco extremo (atravessar a rua correndo muito bem na frente de carros, pulando muros muito altos das escolas, escalando, literalmente, janelas).
Vou ousar bastante, mas em minha opinião a população deve ser alertada que pode haver diagnóstico realizado por profissionais não tão bem preparados, que pais e/ou pacientes devem procurar profissionais reconhecidos pelas Associações de Classe como a ABP, ABDA. Fazendo uma analogia com a cirurgia plástica, a recomendação do Conselho Federal de Medicina é que os pacientes procurem especialistas em cada área, ou seja, o paciente não deve procurar um cirurgião geral, mas um membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. No caso do TDAH muitos pacientes que tomam o remédio podem o estar fazendo sem ter passado por um diagnóstico adequado.
É difícil ser um pesquisador em psicologia no Brasil?
Por estar num campo de pesquisa que é a Neuropsicologia as dificuldades são as mesmas para todos os pesquisadores da área da saúde, faltam verbas, financiamentos inadequados, baixos salários, além do fato de no Brasil a carreira do pesquisador ser completamente ligada a um concurso público para professor adjunto de uma universidade. Uma matéria publicada pelo renomado cientista brasileiro o Dr. Miguel Nicolelis resume bem o que está errado e o que precisa mudar em nosso cenário: “A política da ciência brasileira está ultrapassada. Principalmente, a gestão científica. O mais importante nós temos: o talento humano. Mas ele é rapidamente sufocado por normas absurdas dentro das universidades. Não podemos mais fazer pesquisa de forma amadora. Devemos ter uma carreira para pesquisadores em tempo integral e oferecer um suporte administrativo profissional aos cientistas.”
Por ultimo a maior dificuldade para as publicações em minha área é devido aos critérios da CAPES, pois atuo em dois departamentos na UNIFESP e cada um terá uma área diferente de avaliação pela CAPES, no meu caso Medicina e Interdisciplinaridade, e isso implica em critérios de impacto diferentes o que torna os indicadores adequados para uma área e baixo para a outra. A unificação dos critérios para todas as áreas seria essencial, pois cada vez mais o trabalho interdisciplinar em pesquisas aumenta substancialmente.
Existem mudanças que facilitariam o seu trabalho?
Não sei como mudar essa situação em curto prazo, só acho muito estranho que para ser professor universitário passamos muito tempo no mestrado e no doutorado aprendendo basicamente a fazer pesquisa, e depois lutamos para poder orientar e conduzir pesquisas no tempo que nos sobra entre reuniões e outra tarefas acadêmicas, como a graduação. Bom, não posso reclamar muito, porque estou em uma universidade muito boa, aonde a pesquisa é valorizada e os alunos são muito bons e interessados em pesquisa. A gente “sofre” um pouquinho, mas consegue levar os projetos adiante.
Qual foi o melhor conselho que você já recebeu?
Do meu orientador e chefe atualmente, o Prof. Dr. Orlando Bueno. Um dia eu perguntei a ele como conseguiu fazer com que um grupo de alunos de mestrado e doutorado abrisse um dos centros de neuropsicologia mais conhecidos no Brasil, o CPN e em nosso caso o NANI, ele apenas me respondeu “Eu não sei, assim como você também não saberá até ter as pessoas que querem fazer isso caminhando livremente para tal.”
Você recomenda alguma leitura para quem se interessa pela sua área?
Sim, há no mercado brasileiro diversos livros escritos por renomados pesquisadores em Neuropsicologia no Brasil, mas o mais importante é a leitura crítica acerca das questões políticas que estamos enfrentando hoje. Uma delas refere-se a sua 1ª pergunta sobre a existência de “supostos transtornos” e a outra ainda sobre o problema do CFP considerar testes neuropsicológicos como sendo testes psicológicos, o que difere substancialmente. Para ler mais:
MUSZKAT, Mauro, MIRANDA, M. C., RIZZUT, S. Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. São Paulo: Cortez Editora, 2011, v.3. p.142.
Esta série de entrevistas é uma parceria entre os blogs SocialMente e Cogpsi. Visite-nos para conhecer um pouco mais sobre psicologia!


Texto publicado no Ao Feminino e Além

A realidade às vezes é tão graciosa que em alguns momentos se esconde nos clichês mais batidos do conhecimento popular. Veja bem, não há nada que um clichê bem empregado e sob o controle certeiro e objetividade das evidências não possa demonstrar de forma interessante e clara. O último destes clichês que foi corroborado pode ser considerado uma comprovação para ser comemorada de algo que já era esperado, pois vai servir de argumento contra discurso conservador e fundamentalista que, baseado apenas em preconceito, possa vir a se colocar contra a adoção de filhos por casais do mesmo sexo. Um estudo recentemente publicado no periódico Demography, realizado pelo sociólogo Michael Rosenfeld, e que – segundo o próprio Rosenfeld – é o estudo com crianças cuidadas por pais do mesmo sexo com a maior amostra já coletada, demonstrou que o mais importante para um bom desenvolvimento e futuro sucesso educacional de uma criança não é a orientação sexual de seus pais, mas corroborou com aquilo que humanistas liberais já sabiam, sendo o tal clichê supracitado: Nada é mais importante que a família!
Ou melhor, o importante é ter uma família.
Uma família bem estruturada é fundamental para um bom desenvolvimento de uma criança, a saúde mental desta está altamente relacionada com o que acontece dentro das quatro paredes de seu lar, e isso pouco tem a ver com o quarto dos pais. Segundo Rosenfeld, filhos de uma relação “não tradicional” (assim ele chama no artigo) se saem tão bem quanto filhos de casais tradicionais em diversos fatores, como notas na escola ou sociabilidade, e muito melhor em diversos fatores do que crianças que vivem em orfanatos ou em famílias extremamente disfuncionais e desestruturadas durante o seu desenvolvimento. Em verdade, é preciso lembrar que pais que adotam uma criança – sejam eles “tradicionais” ou não – possuem uma grande tendência a estarem em um estágio da vida de pleno equilíbrio financeiro, educacional e, principalmente, um desejo imenso de se dedicar da forma mais plena àquela criança que entra em sua casa.
Este estudo só vem para fortalecer ainda mais o argumento em favor da ideia de que todos os indivíduos devem possuir direitos iguais, seja esse o direito a casa ou a ter um filho, pois estudos anteriores já haviam comprovado que crianças criadas por pais de mesmo sexo não “aprendem” a sexualidade e a orientação sexual parental – o que parece ser o medo de muita gente por aí. A cada evidência científica que surge, o argumento preconceituoso parece ruir aos poucos. Agora se tem mais uma certeza de que a sexualidade dos pais pouco vai interferir em relação aos cuidados educacionais de uma criança, talvez até o efeito ocorra de forma inversa, ajudando crianças a crescerem com um senso de respeito e liberdade que às vezes não é encontrado em famílias extremamente conservadoras e tradicionais.

Referência:
Michael J. Rosenfeld (2010). Nontraditional Families and Childhood Progress Through School Demography

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