O professor Gerson A. Janczura estuda a memória humana no Laboratório de Processos Cognitivos da Universidade de Brasília (UnB). Sendo um dos pioneiros da área, Gerson teve um papel importante na introdução e expansão da psicologia cognitiva no Brasil. Nesta entrevista que ele gentilmente nos cedeu, o professor explorou um pouco do conhecimento que possuímos hoje acerca de como a memória humana funciona, de como somos capazes de formar memórias falsas, das intervenções práticas que a psicologia cognitiva pode subsidiar e das dificuldades que a psicologia cognitiva enfrenta para ganhar espaço no Brasil.


Gerson, você poderia nos falar brevemente sobre os projetos de pesquisa que você tem conduzido no seu grupo de pesquisa? 
A maioria dos projetos desenvolvidos no Laboratório de Processos Cognitivos/UnB estão associados à investigação da Memória Humana. Duas questões centrais de interesse orientam os projetos: a primeira se relaciona à representação mental do conhecimento na memória e, a segunda, sobre a interação entre a Memória e outros Processos Cognitivos. Seguem alguns projetos em andamento:

1)      Normas de Associação Semântica: este projeto está mapeando as redes associativas de material verbal (palavras) que incluem medidas de força associativa, tamanho do conjunto, conectividade e ressonância. A produção deste material permitirá investigar as influências de mecanismos implícitas (e.g., priming) em medidas de memória diretas e indiretas, assim como a sua influência em outros processos cognitivos como o Raciocínio Lógico e a Categorização.

2)      Categorização e Memória: investiga o efeito de mecanismos da memória no desempenho de tarefas que envolvem conceitos e categorias, classicamente conhecidas como “aprendizagem de conceitos”. As questões de interesse se relacionam à aquisição e representação mental de conceitos naturais e artificiais, o efeito da tipicidade em tarefas de classificação, o efeito da força do traço e outras dimensões representacionais em problemas que envolvem o raciocínio dedutivo.

3)      Dicionário de Verbetes da Memória: este projeto está sendo desenvolvido junto ao GT da ANPEPP “Memória: Modelos, pesquisa básica e aplicações” que congrega 9 pesquisadores vinculados a sete universidades no Brasil e Portugal. O livro apresentará mais de 300 verbetes sobre a teoria e pesquisa sobre a Memória, assim como termos da Ciência Cognitiva.

4)      Projetos desenvolvidos junto aos alunos do Mestrado ou Doutorado:
a.       Treino da Memória para Idosos: Este projeto visa desenvolver um programa de intervenção e avaliação da memória para idosos focalizando a reabilitação das funções mnemônicas e a aquisição de estratégias de enfrentamento do comprometimento observado nesta etapa do desenvolvimento humano.

b.      Processo de facilitação e inibição na memória implícita de idosos: O projeto investiga o desempenho da memória na terceira idade verbal focalizando o papel das etapas de processamento implícito no acesso à informação em tarefas que solicitam a recuperação direta do material auxiliada por pistas.

c.       O desempenho de enxadristas em função da especialização e fases do jogo: Este projeto se insere no campo da Resolução de Problemas e Expertise pretendendo colaborar na compreensão das diferenças entre novatos e especialistas, assim como no curso do desenvolvimento da especialização.
d.      Programa de Reabilitação de Indivíduos com Lesão do Plexo: O objetivo deste projeto é desenvolver um programa de intervenção, baseado em técnicas imagísticas e atividades fisioterápicas, para indivíduos que sofreram a lesão do plexo e, em conseqüência, têm os movimentos do braço respectivo comprometido.

E quais são os projetos de pesquisa para o futuro?
Geralmente, os projetos desenvolvidos pelos pesquisadores estão inseridos em Programas de Pesquisa. No Laboratório de Processos Cognitivos da UnB desenvolvemos estudos em dois grandes programas de pesquisa: um programa direcionado ao desenvolvimento de intervenções relacionadas a diferentes tipos de dificuldades cognitivas (por exemplo, problemas relacionados à memória), e outro programa voltado para a pesquisa básica (por exemplo, desenvolvimento da expertise, investigação de dificuldades de leitura, fatores que influenciam o desempenho da memória). Estes programas de pesquisa interagem, isto é, promovemos uma troca entre as pesquisas básica e aplicada.

Como surgiu o seu interesse pela sua área de pesquisa?
Meu interesse na pesquisa psicológica iniciou na época da graduação. Na ocasião, atuava como monitor do Laboratório de Aprendizagem Animal na PUCRS. Este interesse foi se consolidando quando passei a coordenar o Laboratório de Percepção e Psicofísica na mesma IES, e desenvolvi minha primeira pesquisa no campo da Percepção e Psicofísica investigando a Ilusão de Myller-Lyer. Na mesma época, fui convidado para colaborar na montagem do Laboratório de Aprendizagem Animal da UCS/RS. Naquele período não tinha, ainda, entrado em contato com a Psicologia Cognitiva Experimental. O primeiro contato com a área ocorreu quando fiz o mestrado na UnB, na década de 1980. No início do mestrado esperava desenvolver a pesquisa de conclusão seguindo a abordagem da Análise Experimental do Comportamento. Entretanto, experienciava muitas dúvidas e insatisfações teóricas, metodológicas e empíricas com esta perspectiva. Minhas críticas eram semelhantes àquelas relatadas na história da Psicologia Cognitiva nas décadas de 1950 e 1960. Durante o mestrado tive a oportunidade de conhecer a abordagem do processamento da informação e desenvolver minha pesquisa no campo da representação mental do conhecimento.

Alguns dos seus projetos indicam que o conhecimento produzido pela psicologia cognitiva tem permitido o desenvolvimento de intervenções efetivas em indivíduos com prejuízos na memória (e.g. idosos). Conte-nos um pouco sobre este tipo de aplicação da psicologia cognitiva e como tem sido a sua experiência com estas aplicações.
Desenvolvemos um programa de intervenção e avaliação da memória para idosos institucionalizados. Nossa motivação era promover qualidade de vida de um grupo que tem recebido pouca atenção. Os procedimentos, desenvolvidos em sessões com 60 minutos, duas vezes por semana durante quase quatro semanas, evidenciaram que a intervenção melhorou o desempenho em testes de memória. Além disso, foi verificado que os idosos também obtiveram uma avaliação melhor em testes de avaliação neuropsicológica após o treinamento. Os procedimentos implementados no treino de memória foram delineados a partir do conhecimento científicos acerca dos processos da memória e dos fatores que podem favorecer ou dificultar o seu desempenho. Esta proposta será, agora, estendida e ampliada para idosos sem comprometimento cognitivo severo. O termo “envelhecimento cognitivo normal” está associado às características cognitivas observadas na terceira idade que não são atribuídas a condições patológicas como, por exemplo, a Doença de Alzheimer.
Outra derivação tecnológica que estamos desenvolvendo se apóia em estudos experimentais e clínicos sobre a influência da imagística no indivíduo. Pesquisas e a prática clínica têm evidenciado que o uso de imagens mentais pode afetar o comportamento humano e o próprio funcionamento cerebral. Este fato pode ser útil no programa de intervenção que estamos desenvolvendo, baseado em técnicas imagísticas e atividades fisioterápicas, para indivíduos que sofreram a lesão do plexo e, em conseqüência, têm os movimentos do braço(s) respectivo comprometido. A origem desta lesão é, usualmente, acidentes com motocicletas sendo que a maioria dos pacientes com esta condição é homem. Este projeto se encontra em avaliação pelo Comitê de Ética, e será brevemente iniciado. Ou seja, pacientes com esta condição serão submetidos a um programa de exercícios mentais associados a fisioterapia durante um conjunto de sessões. Nossa expectativa é que estes pacientes alcançarão maior recuperação dos movimentos comparados aos pacientes que somente receberão a fisioterapia.

Como você avalia as implicações do avanço das neurociências no estudo de aspectos cognitivos e comportamentais?
As neurociências têm impactado muito positivamente as hipóteses cognitivas sobre o comportamento humano. As evidências produzidas, por exemplos, pelas técnicas de neuroimagem têm confirmado muitas afirmações sobre o funcionamento da mente e evidenciado a necessidade de compreendermos e investigarmos os fenômenos psicológicos em, pelo menos, dois níveis: o nível neurológico e o nível cognitivo. Estes níveis interagem impondo limites mutuamente, tanto no comportamento quando nos modelos teóricos propostos pelos pesquisadores.

Considerando o panorama atual na psicologia cognitiva, o que nós sabemos hoje sobre o que é a memória e como ela funciona?
Trata-se de uma pergunta ambiciosa. A investigação científica da memória começou há mais de 100 anos e tem produzido uma vasta literatura científica que se dedica a relatar nosso conhecimento sobre a memória do ponto de vista cognitivo. Tentarei apontar alguns aspectos que considero relevantes. A memória é uma propriedade do cérebro que permite ao indivíduo manter sua história de aprendizagem ao longo do tempo. Sabemos que vários fatores influenciam a aquisição, retenção e recuperação destes conteúdos. Isto significa que o desempenho da memória pode ser beneficiado ou comprometido por diferentes processos, ou momentos, que designamos de codificação, armazenamento e recuperação. Estes fatores incluem as características da informação a serem memorizadas, as diferenças individuais, a natureza do teste de memória, as estratégias administradas pelo indivíduo no momento da memorização e da recuperação, como a informação é apresentada para memorização, o tempo decorrido entre a experiência e sua lembrança, entre outros fatores. Mas, é importante destacar que, além de suas contribuições individuais, as variáveis que afetam as diferentes etapas podem interagir influenciando a probabilidade de lembrarmos-nos de experiências e conhecimentos.
Um fator que mudou nossa compreensão sobre o funcionamento da memória foi relatado em vários estudos experimentais na década de 1970 com amnésicos e indivíduos sem danos aparentes de memória. Estes estudos mostraram que a chance de um amnésico lembrar informações também era influenciada pela maneira como aqueles pacientes eram testados. Demonstrou-se que os pacientes registravam experiências anteriores mesmo que não tivessem consciência destas no momento em que a memória era avaliada e, apesar disto, aquelas informações estavam influenciando seu comportamento atual. Estes resultados são semelhantes em indivíduos com memória intacta, ou seja, formamos nossas memórias com e sem a participação da consciência e evocamos informações com e sem intenção consciente. Atualmente, nossa compreensão sobre a memória contempla mecanismos conscientes (denominados de processos estratégicos) e inconscientes (denominados de processos automáticos). Neste sentido, a memória também se refere às influências dos conteúdos conscientes e inconscientes e dos mecanismos estratégicos e automáticos sobre o comportamento humano.
Sabemos que este funcionamento está sujeito a falhas incluindo esquecimentos temporários, esquecimentos parciais, e falsas lembranças (ou, falsas memórias). Estes fatos têm sido discutidos em função do caráter construtivo ou reconstrutivo da memória e têm influenciado nossa compreensão sobre diversos fenômenos cotidianos como a testemunha ocular e o depoimento assistido de crianças.
Além dos avanços na compreensão dos processos da memória, a pesquisa tem contribuído na concepção da memória como um sistema. Evoluímos do modelo clássico de um armazenador breve de experiências imediatas (i.e., Memória de Curto-Prazo) para um modelo mais satisfatório (i.e., Memória de Trabalho) que atende às demandas e complexidade das tarefas momentâneas. Vários modelos teórico-experimentais (e.g., MATRIX, PIER2, Modelos Conexionistas, TODAM, ACT*, CONJOINT RECOGNITION, MINERVA, CHARM) estão sendo testados e aprimorados para respondermos às questões fundamentais sobre como o conhecimento é armazenado, como é representado e retido durante longos períodos de tempo (i.e., Memória de Longo-Prazo).
Os comentários acima mencionaram, muito brevemente, apenas detalhes sobre nosso conhecimento atual sobre a memória humana. Vários campos de estudos que não citei incluem avanços nos temas: metamemória, memória sensorial, memória não-declarativa, memória episódica, memória autobiográfica, memória para o espaço e tempo, memória semântica, memória visual, desenvolvimento da memória, distúrbios da memória, memória na terceira idade, memória prospectiva, métodos de investigação da memória, e neurociência da memória.

O testemunho de pessoas que presenciaram determinados episódios (como um assassinato) pode ter um peso considerável no julgamento de um caso. Entretanto, muitas pesquisas na psicologia cognitiva indicam que modificamos frequentemente nossas memórias episódicas quando as recuperamos. Podemos confiar na nossa capacidade de recuperar estes episódios passados?
A observação de que o indivíduo pode gerar falsas memórias não implica que toda recordação seja falha, ou que devemos desconfiar de todas as nossas lembranças. As falsas memórias podem se relacionar a episódios específicos e traumatizantes, como um assassinato, mas também podem refletir experiências comuns do cotidiano. Entretanto, a maioria de nossas recordações é acurada. É importante lembrar que a memória não atua independentemente de outros processos mentais como, por exemplo, o raciocínio, a atenção. Isto significa que uma recordação pode sofrer o “filtro” de outras atividades mentais levando o indivíduo a concluir que determinada memória é falsa, verdadeira ou duvidosa. Além disso, não podemos excluir a contribuição de outros componentes da experiência humana como, por exemplo, a emoção e sua relação com a cognição.

É difícil ser um pesquisador em psicologia no Brasil?
Sim, é difícil. A pesquisa de ponta sobre a cognição humana é cara. Considere, por exemplo, que cada vez mais a pesquisa têm se apoiado em variáveis biológicas. Tanto as variáveis cognitivas quanto as biológicas demandam especialização metodológica de alto custo operacional. Como coletar dados de imagem cerebral sem a aparelhagem apropriada (RMF, fMRI, etc)? Outra dificuldade se relacionada à escassez de especialistas na área no país e ao ensino desta abordagem. Quantos cursos de graduação incluem Psicologia Cognitiva nos cursos de graduação? Quantos cursos de pós-graduação têm linhas de pesquisa e programas de pesquisa nesta abordagem? Apesar de esta perspectiva teórico-metodológica estar consolidada em outros países há muitas décadas, no Brasil somente mais recentemente a área cognitiva tem logrado participação e reconhecimento na comunidade científica e nos meios acadêmicos.

Qual foi o melhor conselho que você já recebeu?
 Um dos conselhos mais úteis que recebi durante meu doutoramento foi sempre “fazer o melhor possível em minhas tarefas”. Este conselho foi dado pelo meu orientador, Dr. Douglas L. Nelson da University of South Florida/USA, lá nos anos 1990.

Você recomenda alguma leitura para quem se interessa pela sua área?
Vários livros sobre a área já estão disponíveis no Brasil. Se a pessoa não tem familiaridade com a área sugiro que leia um manual ou livro texto. Um panorama amplo da área é oferecido por:

- Sternberg, R.J. (2010). Psicologia Cognitiva (Tradução da 5a.ed.). São Paulo: CENGAGE.
- John R. Anderson (2004), Psicologia Cognitiva e suas Implicações Experimentais, 5a. Edição, Editora LTC.
- Matlin, M. (2004). Psicologia Cognitiva. 5. ed. São Paulo: LTC.
Se a pessoa tem interesse em Terapia Cognitiva, sugiro que inicie com a leitura de:
- Beck, J. S. (1997). Terapia Cognitiva: Teoria e Prática. Porto Alegre: ARTMED.

Esta série de entrevistas é uma parceria entre os blogs SocialMente e Cogpsi. Visite-nos para conhecer um pouco mais sobre psicologia


Mônica C. Miranda é pesquisadora pela Associação Fundo de Incentivo à Pesquisa (AFIP), formada em Psicologia pela Universidade São Marcos e possui Mestrado e Doutorado em Psicobiologia pela Universidade Federal de São Paulo. É orientadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde e Pesquisadora do Depto de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo. Coordena o Núcleo de Atendimento Neuropsicológico Infantil Interdisciplinar (NANI) do Centro Paulista de Neuropsicologia. Mônica é também uma das autoras do livro Neuropsicologia do Desenvolvimento: conceitos e abordagens, publicado em 2006. Além disso, ela também é uma das organizadoras do livro Neuropsicologia do Desenvolvimento: Transtornos do neurodesenvolvimento, que será publicado em outubro de 2012 pela Editora Rubio. Nesta entrevista, a Mônica ofereceu a sua perspectiva, enquanto uma profissional da área, sobre as recentes polêmicas envolvendo o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), além de comentar sobre os seus projetos de pesquisa. Façam bom proveito!
Mônica, você pode nos contar um pouco sobre os projetos de pesquisa que você está desenvolvendo em seu grupo de pesquisa atualmente e sobre os projetos que estão a caminho?
As pesquisas que eu estou envolvida atualmente dizem respeito a duas linhas principais: a primeira se refere a desenvolvimento/normatização de instrumentos de avaliação neuropsicológica na infância, levando em consideração as características socioeconômicas e culturais na infância; a segunda linha é de diagnóstico, intervenção e prevenção nos distúrbios do neurodesenvolvimento.
Como surgiu o seu interesse pela sua área de pesquisa?
A Universidade São Marcos, na qual fiz o curso de Psicologia, oferecia um curso com base na Psicanálise que me fascinou a princípio e me fez pensar em buscar a especialização nessa área, e a área clínica me parecia o caminho mais “lógico”; iniciei, a partir do 5º ano, os estágios clínicos, obrigatórios e opcionais, mas um dos estágios opcionais, atendimento psicoterápico a crianças com obesidade, mostrou-me outros caminhos. As crianças eram encaminhadas pela Disciplina de Nutrologia da UNIFESP, onde tinham acompanhamentos com médicos, nutricionistas, entre outros, e nossa atuação era a intervenção psicológica. Nesses atendimentos descobri o quanto era fascinante, e ao mesmo tempo inquietante, lidar com esses quadros. Inquietante porque percebia haver não só fatores psíquicos que determinavam esse quadro, mas também outros fatores os quais eu ainda não conseguia denominar na época, pelo pouco conhecimento. Essa inquietude me fez buscar a especialização na área da saúde, especificamente na UNIFESP devido à parceria com a Universidade São Marcos, no trabalho com as crianças com obesidade. Ao receber uma indicação de uma vaga de estágio no Departamento de Psicobiologia, iniciei o contato com a pesquisa científica, bem como com a neuropsicologia, ambas desconhecidas para mim. A neuropsicologia se tornou minha paixão exatamente por estudar as interações entre os fatores neurobiológicos e psicológicos.
Em relação à sua primeira linha de pesquisa, como se dá essa relação entre avaliação neuropsicológica e características sócio-econômicas? As características sócio-econômicas podem influenciar o desenvolvimento neurocognitivo (e até que ponto se dá essa influência)?
A avaliação neuropsicológica na infância é fundamental na definição de vários diagnóstico, e assim as diversas técnicas (testes, instrumentos) de avaliação precisam ter dados padronizados levando em consideração se há ou não a influencia de fatores socioeconômicos e culturais. O que isso quer dizer? que esse é um fenômeno complexo, não basta utilizarmos testes que tenham padrão de desempenho internacionais se não soubermos até que ponto esse desempenho sofre a influencia dessas variáveis. Por exemplo, vimos que em algumas culturas determinadas habilidade (verbais, por ex.) podem ser mais estimuladas, e ainda que em ambientes menos favorecidos economicamente essas mesmas habilidades verbais, como no caso da aquisição de vocabulário, podem se desenvolver de forma diferente. Veja que utilizo o termo 'diferente' e não 'pior' ou 'melhor', pois seria muita imprudência qualquer afirmação disso, na medida em que, como eu disse antes, o fenômeno ambiental é algo complexo e não totalmente entendido, ou seja, o que nesse ambiente em que a criança cresce e se desenvolve poder ser prejudicial e no que? Outro exemplo, a desnutrição é prejudicial ao desenvolvimento cognitivo, mas quando aliado a extensão desse quadro mais condições de extrema pobreza que potencializam o risco de continuidade da desnutrição. O papel das pesquisas é exatamente esse, determinar o que e como.
Tem-se debatido regularmente na mídia sobre o TDAH, sendo que alguns grupos de profissionais questionam a existência deste distúrbio e de outros, os chamando de ‘supostos transtornos’. Qual é a sua posição sobre este tema?
Essa argumentação não se sustenta a luz da comunidade científica. Essa discussão surgiu acerca de 2 anos no Brasil por um grupo de profissionais apoiados pelo Conselho Federal de Psicologia, mas sem nenhuma base cientifica, ou seja, essa discussão se apoia em concepções teóricas e ideais que já foram contestadas pela comunidade cientifica brasileira por não terem nenhuma base cientifica.
Por exemplo, uma carta emitida e publicada pela Associação Brasileira do Déficit de Atenção (www.tdah.org.br), escrita pelo Dr. Paulo Mattos e Dr. Luiz A. Rohde, respeitados pesquisadores brasileiros em TDAH, bem como pela Associação Brasileira de Psiquiatria (www.abp.org.br), traz argumento importantes acerca dessas opiniões. Segue um trecho dessa carta: “Quando você ouve alguém falar que TDAH é uma doença inventada, por mais eloquente que seja o autor desta opinião sem qualquer base científica, ou mesmo a sua titulação (a incapacidade e leviandade sempre foram democráticas: também acometem médicos, psicólogos, etc.), pesquise sobre a veracidade (e a origem) do que está sendo dito (…).
O reconhecimento que se trata de um transtorno neurobiológico que causa prejuízo significativo é inequívoco, com estimativa de prevalência, no mundo inteiro, em cerca de 5,2% de crianças afetadas e que persiste na idade adulta.  Há sim estudos como o do Prof. Dr. Marcos Arruda, cujo resumo foi apresentado no 3rd International Congress on ADHD, Berlim/Alemanha, e os resultados mostram que muitos diagnósticos são realizados por profissionais que não conhecem os critérios internacionais. Há necessidade de critérios diagnósticos baseados em instrumentos gold-standard, mas o mesmo estudo ainda aponta que “aproximadamente 1,7 milhões de adolescentes e crianças brasileiras com TDAH nuca foram diagnosticados e 2,5 milhões nunca foram tratados”.
Umas das alegações desse grupo de profissionais é que os critérios diagnósticos baseados nas escalas de comportamento como a SNAP não é critério de doença, “Se você preencher seis das perguntas tem o diagnóstico de déficit de atenção, hiperatividade ou dos dois” (afirmativa desse grupo de profissionais). Porém, a delimitação diagnóstica não se limita apenas aos critérios descritos em escalas de comportamento, mas a uma ampla variedade de comportamentos que são verificados em diferentes contextos que permitirão uma observação mais flexível e dinâmica da criança com TDAH, bem como na avaliação interdisciplinar que poderá afastar outras causas, como as ambientais.
Para finalizar, é um absurdo esse grupo promover esses fóruns sem dar espaço aos pesquisadores da área, pois para mim esses fóruns com uma visão unilateral são uma irresponsabilidade, pois pode negar o direito a essas crianças de tratamento adequado. Essa semana o Instituto ABCD divulgou que a Câmara analisa o Projeto de Lei 3394/12, do deputado Manoel Junior (PMDB-PB), que obriga os estados e municípios a manter programa nas instituições de educação básica para diagnóstico e tratamento de estudantes com dislexia. Outra conquista foi o Edital do ENEM de 24 de Maio desse ano que haverá atendimento DIFERENCIADO aos portadores de dislexia, déficit de atenção, autismo, etc. Sem as pesquisas que mostram as dificuldades dessas crianças essa conquista não teria acontecido e é irresponsabilidade não dar o direito a estes indivíduos de que há um distúrbio e que a culpa não é deles.
Ainda sobre esta polêmica, estes mesmos profissionais têm alegado haver uma prescrição indiscriminada de medicamentos relacionados ao TDAH. Este é um problema real?
Primeiro é importante ressaltar que quando o diagnóstico de TDAH é estabelecido, o uso de medicações é uma estratégia muito útil e necessária para atingir os objetivos dos pacientes. A utilização de medicações não é a regra para todos os casos, particularmente aqueles com sintomas leves e sem repercussões importantes na vida social e acadêmica, mas isso tem que ser analisado caso a caso. Mesmo assim, pode ser necessário medicar esses casos leves e monitorar os efeitos e eficácia.
Sim, houve um aumento de prescrições de metilfenidato (principal medicamento utilizado para tratamento do TDAH), mas isso não significa que está tendo prescrição indiscriminada, e se isso ocorre é devido a um importante fator: em minha opinião há profissionais mal preparados e que saem fazendo “diagnóstico” equivocado de TDAH. Já vi apresentações em congressos (pôsteres, apresentações orais) de profissionais da saúde que são verdadeiros absurdos, pois isoladamente faziam tal “diagnóstico” e ai obviamente pode haver prescrição inadequada de medicamentos.
 Outro fator, que destacamos em nosso livro (ver referência ao final), é que o TDAH é um transtorno crônico do desenvolvimento, melhor tratado vagarosa e sistematicamente. Isso vai de encontro ao senso de urgência do paciente ao descobrir que tem TDAH – ele busca uma cura rápida, e pode tentar apressar o processo com suas próprias mãos, aumentando as doses muito rapidamente, que pode levar a um curso mais longo de tentativas de tratamento, muitas vezes com diversos medicamentos diferentes e sem a eficácia possível. Por outro lado, muitos médicos relutam em prescrever doses adequadas de medicamentos, o que pode impedir a identificação de uma dose ótima.
Em uma entrevista à Revista Época (edição 2229) o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria afirmou algo muito importante “Podemos discutir se estamos medicando demais, mas dizer que o TDAH não existe ou que a medicação é desnecessária não é o caminho para que isso aconteça”, considera. “E não é comum as pessoas terem TDAH. Se olharmos as estatísticas, 95% das crianças não têm a doença, e não o contrário”.
Os debates devem, sim, acontecer em torno dessa questão, alertando a população que simplesmente não utilizar medicamento em casos de TDAH, principalmente quando há comorbidades psiquiátricas, é um risco à vida desses pacientes. Tivemos vários casos atendidos em nosso núcleo (Núcleo de Atendimento Neuropsicológico Infantil) em que as mães se recusavam a medicar seus filhos e vimos essas crianças em situação de risco extremo (atravessar a rua correndo muito bem na frente de carros, pulando muros muito altos das escolas, escalando, literalmente, janelas).
Vou ousar bastante, mas em minha opinião a população deve ser alertada que pode haver diagnóstico realizado por profissionais não tão bem preparados, que pais e/ou pacientes devem procurar profissionais reconhecidos pelas Associações de Classe como a ABP, ABDA. Fazendo uma analogia com a cirurgia plástica, a recomendação do Conselho Federal de Medicina é que os pacientes procurem especialistas em cada área, ou seja, o paciente não deve procurar um cirurgião geral, mas um membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica. No caso do TDAH muitos pacientes que tomam o remédio podem o estar fazendo sem ter passado por um diagnóstico adequado.
É difícil ser um pesquisador em psicologia no Brasil?
Por estar num campo de pesquisa que é a Neuropsicologia as dificuldades são as mesmas para todos os pesquisadores da área da saúde, faltam verbas, financiamentos inadequados, baixos salários, além do fato de no Brasil a carreira do pesquisador ser completamente ligada a um concurso público para professor adjunto de uma universidade. Uma matéria publicada pelo renomado cientista brasileiro o Dr. Miguel Nicolelis resume bem o que está errado e o que precisa mudar em nosso cenário: “A política da ciência brasileira está ultrapassada. Principalmente, a gestão científica. O mais importante nós temos: o talento humano. Mas ele é rapidamente sufocado por normas absurdas dentro das universidades. Não podemos mais fazer pesquisa de forma amadora. Devemos ter uma carreira para pesquisadores em tempo integral e oferecer um suporte administrativo profissional aos cientistas.”
Por ultimo a maior dificuldade para as publicações em minha área é devido aos critérios da CAPES, pois atuo em dois departamentos na UNIFESP e cada um terá uma área diferente de avaliação pela CAPES, no meu caso Medicina e Interdisciplinaridade, e isso implica em critérios de impacto diferentes o que torna os indicadores adequados para uma área e baixo para a outra. A unificação dos critérios para todas as áreas seria essencial, pois cada vez mais o trabalho interdisciplinar em pesquisas aumenta substancialmente.
Existem mudanças que facilitariam o seu trabalho?
Não sei como mudar essa situação em curto prazo, só acho muito estranho que para ser professor universitário passamos muito tempo no mestrado e no doutorado aprendendo basicamente a fazer pesquisa, e depois lutamos para poder orientar e conduzir pesquisas no tempo que nos sobra entre reuniões e outra tarefas acadêmicas, como a graduação. Bom, não posso reclamar muito, porque estou em uma universidade muito boa, aonde a pesquisa é valorizada e os alunos são muito bons e interessados em pesquisa. A gente “sofre” um pouquinho, mas consegue levar os projetos adiante.
Qual foi o melhor conselho que você já recebeu?
Do meu orientador e chefe atualmente, o Prof. Dr. Orlando Bueno. Um dia eu perguntei a ele como conseguiu fazer com que um grupo de alunos de mestrado e doutorado abrisse um dos centros de neuropsicologia mais conhecidos no Brasil, o CPN e em nosso caso o NANI, ele apenas me respondeu “Eu não sei, assim como você também não saberá até ter as pessoas que querem fazer isso caminhando livremente para tal.”
Você recomenda alguma leitura para quem se interessa pela sua área?
Sim, há no mercado brasileiro diversos livros escritos por renomados pesquisadores em Neuropsicologia no Brasil, mas o mais importante é a leitura crítica acerca das questões políticas que estamos enfrentando hoje. Uma delas refere-se a sua 1ª pergunta sobre a existência de “supostos transtornos” e a outra ainda sobre o problema do CFP considerar testes neuropsicológicos como sendo testes psicológicos, o que difere substancialmente. Para ler mais:
MUSZKAT, Mauro, MIRANDA, M. C., RIZZUT, S. Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade. São Paulo: Cortez Editora, 2011, v.3. p.142.
Esta série de entrevistas é uma parceria entre os blogs SocialMente e Cogpsi. Visite-nos para conhecer um pouco mais sobre psicologia!

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